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Homicídio preterdoloso e a política criminal do terror

Data: 13/04/2011 00:00

Autor: Júlio Medeiros

 

O presente artigo tem a singela pretensão de relacionar as teorias penais cabíveis no enfoque do homicídio preterdoloso com uma das mais relevantes teses defensivas no Tribunal do Júri, no intuito de se demonstrar tanto a elasticidade do dolo eventual quanto a tal “política criminal do terror”, servindo-se, para tanto, da específica análise do caso do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado em Brasília/DF em 1997.

 

Pois bem, crime preterdoloso (ou preterintencional) - uma das espécies de crime qualificado pelo resultado -é aquele em que a ação do agente causa um resultado mais grave que o pretendido. A preterintencionalidade, em outras palavras, pressupõe uma desproporção entre a intenção e o resultado, trazendo à baila, assim, a noção de tipo penal incongruente. 
 
Para a doutrina italiana, no crime qualificado pelo resultado há duplicidade de resultados heterogêneos, dos quais somente um deles é desejado pelo agente. Apenas para explicitar sua amplitude (que abarca quatro espécies), ocorrendo lesões corporais culposas no trânsito (culpa na conduta) e posterior omissão de socorro dolosa (dolo no resultado), caracteriza-se, por conseguinte, um crime qualificado pelo resultado que é, aliás, o revés da espécie preterdolosa.
 
Nesse diapasão, há de se sustentar, adi exempli, que não é o latrocínio um crime necessariamente preterdoloso (até pelo fato de ser configurado pela expressão genérica “se resulta morte”, constante do art.157, § 3º, segunda figura, do Código Penal), já que a morte da vítima poderá ocorrer intencionalmente ou, inclusive, de forma premeditada.

 

Quanto ao homicídio preterdoloso, há, em síntese, dois exemplos muito clássicos delineando-o: a) o agente desfere uma facada na perna de outrem com a intenção apenas de feri-lo e, casuisticamente, secciona-se a artéria femural, causando-lhe a morte culposamente; b) o agente desfere um soco no rosto da vítima, com a intenção clara e inequívoca de causar-lhe apenas uma lesão corporal, porém, a vítima bate com a cabeça em uma pedra, tem um traumatismo craniano e vem a óbito. 
 
Em ambos os casos supra houve conduta inicial dolosa e resultado agravador culposo, por isso que é muito comum se afirmar que no delito preterdoloso há dolo no antecedente (minus delictum)e culpa no consequente (majus delictum). É, pois, nos dizeres de Nélson HUNGRIA1, “um crime complexo, in partibus doloso e in partibus culposo”. Assim, como se vê, o homicídio preterdoloso nada mais seria que uma “construção doutrinária” consistente em lesão corporal seguida de morte (art.129, § 3º, CP), com pena variando de 4 a 12 anos de reclusão2. Porém, o punctum saliens da problemática é que o art. 129, § 3º, in fine, do Código Penal faz ressalvas para a configuração de tal delito: “Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzí-lo” (destacamos) - em alusão à figura do dolus eventualis. Aqui merece ser feito parênteses. 
 
Quando se fala em dolo eventual, espécie de dolo indireto (assim como o dolo alternativo) previsto expressamente pelo art.18, I, in fine, do Código Penal, deve-se ter em mente que, para explicá-lo, surgiram diversas teorias: a da representação (que confunde dolo eventual com culpa consciente), a da probabilidade e a teoria do consentimento que, de fato, foi a teoria adotada pelo nossa lei penal substantiva, com supedâneo na doutrina alemã -mais precisamente na “fórmula 2” de Frank (teoria positiva do consentimento), conforme assinalam Damásio de JESUS3, Luiz RÉGIS PRADO e Cézar Roberto BITENCOURT.4 Frank reconheceu, após anos de estudos, ser a previsibilidade insuficiente para caracterizar o dolo eventual. Para ele, já não bastava a representação do evento e a consideração da possibilidade de sua causação para caracterizar o instituto, sendo necessário, ademais, que o sujeito consentisse em sua produção. 
 
Em virtude desse reconhecimento pode-se depreender a elasticidade do dolo eventual. A expressão “assumiu o risco”, constante do art.18, I, parte final do CP, é insuficiente para identificar esse dolo condicionado, devendo, por conseguinte, ser interpretada restritivamente. Dito de outro modo -para não se fazer tábula rasa do princípio favor libertatis -, o dolo eventual não deve ser presumido, e sim provado. Por isso, a propícia indagação de Lênio STRECK5 após assinalar que o direito não deve ser aplicado hobbesianamente: “afinal, qual o posicionamento mais garantista?” 
 
Vale destacar que um dos maiores penalistas de todos os tempos, Nélson HUNGRIA6, já aduzia em 1978 que, de fato, não se podia dar demasiada elasticidade à expressão “assumiu o risco”. Realisticamente falando, quem senta em um automóvel para dirigir no trânsito caótico de São Paulo está, em  última análise, assumindo o risco de produzir um resultado de lesões corporais e, dependendo do caso, a morte de um desatento pedestre. Todavia, ad argumentandum, é inolvidável que tal conduta se insere no campo do risco permitido, já que o motorista, ao dirigir seu carro em velocidade não excessiva desenvolve um “comportamento estereotipado inócuo”7, segundo a propalada doutrina de Günther JAKOBS. Em outras palavras, não há criação de um risco proibido. 
 
Por isso que no intento de melhor configurar o dolus eventualis a lição de Heleno Cláudio FRAGOSO8 aparece em posição de vanguarda, sendo inclusive adotada pelo Supremo Tribunal Federal ao aduzir que: “a rigor, a expressão assumir o risco é imprecisa, para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento”. Ora, se não for assim, é bom deixar bem claro que haverá confusão entre os dois conceitos, podendo-se estabelecer, por conseguinte, uma “política criminal do terror”. 
 
Nesse lume, o perfeito entendimento de tal discrímen é de suma importância, uma vez que o nosso modelo fascista de Código Penal não distingue, para efeitos de previsão in abstracto de pena cominada, entre dolo direto e dolo eventual -espécie de dolo indireto. Em ambos os casos, segundo o Código, houve dolo, e é isso o que importa. Obviamente que o magistrado, valendo-se do bom-senso, deverá levar em conta as peculiariedades do caso concreto na fase da aplicação da pena, sendo que o dolo eventual fará jus a uma reprimenda menos severa que o dolo direto. Nesse ínterim, vale frisar que no tocante ao dolo direto foi adotada explicitamente a teoria da vontade, consubstanciada na expressão “quis o resultado” na primeira parte do art. 18 da lei penal substantiva. 
 
Quanto à competência para julgamento do homicidio preterdoloso, por sua vez o art. 5º, XXXVIII, d, da Lei Fundamental dispõe ser o Júri juiz soberano para o julgamento de crimes dolosos contra a vida, sendo que de acordo com E. Magalhães NORONHA9 o referido dispositivo não pode ser interpretado ampliativamente por ser o Júri tribunal especial. Em vista disso, o homicídio preterdoloso, crime de forma híbrida, seria da alçada do juiz singular,  inclusive por ser infenso ao rol do art. 74, § 1º, do CPP -que disciplina a competência do Júri.

 

Destarte, em relação à essência do crime insta assinalar que não existe animus necandi em “homicídio” preterdoloso. Em outras palavras, o Júri não julga o delito de lesões corporais especificamente, em que é característica a intenção de ferir (animus laedendi), mas sim o típico homicídio doloso tentado ou consumado, em que sempre há a peculiar intenção de matar. Por exemplo, no caso do índio Pataxó Galdino Jesus da Silva, que morreu queimado em Brasília em 1997, houve intensa discussão acerca da  existência ou não de animus necandi por parte dos acusados. Ao final, prevaleceu a tese defendida pelo parecer do mestre Damásio E. de Jesus, concluindo que, naquela oportunidade, houve homicídio qualificado com dolo eventual.

 

Frise-se que, anteriormente, havia ocorrido a desclassificação do crime, pelo juízo a quo, por entender que se tratava de típica lesão corporal seguida de morte tendo-se em vista diversos argumentos, dentre eles: “o fogo normalmente não mata”; “os acusados nunca anuíram ao resultado morte” eo “resultado morte lhes escapou à vontade” só podendo a eles ser atribuído pela ‘previsibilidade’ (referindo-se à culpa). 
 
Vale a pena destacar que o julgamento do Recurso Especial nº 192.049/DF pelo STJ, decidindo pela pronúncia dos réus nos termos da denúncia, restou no ponto assim ementada:

 

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. 
TEMPESTIVIDADE. PREQUESTIONAMENTO SÚMULA Nº 400STF. 
JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO E LESÃO CORPORAL 
SEGUIDA DE MORTE. PRONÚNCIA DESCLASSIFICAÇÃO. 
REVALORAÇÃO E REEXAME DO MATERIAL COGNITIVO (...) IV A 
decisão, na fase da pronúncia, aprecia a admissibilidade, ou não, 
da acusação, não se confundindo com o denominado iudicium 
causae. V -A desclassificação, por ocasião do iudicium accusationis, 
só pode ocorrer quando o seu suporte fático for inquestionável e 
detectável de plano. VI -Na fase da pronúncia (iudicium 
accusationis), reconhecida a materialidade do delito, qualquer 
questionamento ou ambiguidade faz incidir a regra do brocardo in 
dubio pro societate. VII -Detectada a dificuldade, em face do 
material cognitivo, na realização da distinção concreta entre 
dolo eventual e preterdolo, a acusação tem que ser considerada 
admissível. Recurso reconhecido e provido” (Rel. Min. FÉLIX 
FISCHER, j. em 09.02.1999) (destacamos).
 
 
E, ainda reforçando a importância da análise de se conhecer o elemento anímico do agente, percebe-se inclusive que no latrocínio - crime hediondo ex vi do art. 1º, inciso II da Lei nº 8.072/90 -a finalidade de subtração patrimonial fará com que o seu julgamento seja realizado pelo juiz singular e não pelo Tribunal popular, muito embora haja a morte da vítima. Em outros termos, em tal crime a violência é mero meio (modus operandi) para se alcançar o fim de se apropriar de coisa alheia móvel. 
 
É o que, aliás, categoricamente dispõe a Súmula 603 do Supremo Tribunal Federal: “A competência para o processo e julgamento de latrocínio é do juiz singular e não do Tribunal do Júri”. Excepcionalmente, porém, o latrocínio poderá ser julgado perante o júri na hipótese de conexão (ex vi do art. 78, § 1º, do Código de Processo Penal) com um caso que deva ser submetido a julgamento pelo Júri. 
 
Assim, ante o exposto percebe-se icto oculi que a compreensão do que seja um “homicídio preterdoloso” requer, do mesmo modo, a aplicação da teoria finalista da ação, de Hans WELZEL10, adotada pelo Código Penal, sendo perfeitamente compreensível que o latrocínio (não necessariamente preterdoloso) não seja julgado pelo Júri -haja vista que o agente visa antes e prima facie, ferir o princípio de que a res, onde quer que ela esteja, clama pelo seu dono; para alcançar tal finalidade, ele simplesmente mata. 
 
Ademais, no Tribunal do Júri -do ponto de vista agora da práxis forense -, uma das teses defensivas mais relevantes é justamente a desclassificação própria do homicídio doloso consumado para lesões corporais seguidas de morte, importando em decorrência disso significativas alterações quanto ao sistema trifásico de aplicação da pena no caso concreto. Já a sorte do latrocida por diversos motivos estará lançada aos quatro ventos.

 

Caberá ao advogado criminalista, em última análise, a difícil missão de encampar a tese da cisão desse delito para o concurso11 entre homicídio e roubo (ou furto), no intuito de que o latrocida seja, no final das contas, julgado pelo Tribunal do Júri – onde poderá, inclusive, ser absolvido por seus pares ou, caso condenado, ter a pena significativamente minorada pelo juiz presidente em face de eventual e relevante defesa apresentada em Plenário.

 

1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código de Direito Penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955, p. 361.

 

2 Apenas para efeito de comparação, a pena do homicídio qualificado (art. 121, §2º do CP) varia de 12 a 30 anos de reclusão, sendo, ademais, crime hediondo.

 

3 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 291, v 1.

 

4 PRADO. Luiz Régis e BITENCOURT, Cezar Roberto. Elementos de direito penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 87.

 

5 STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 155.

 

6 Op. cit, p. 113, v 1. 7 JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en Derecho penal, p.107.

 

8 FRAGOSO, H. C. Lições de direito penal – A Nova Parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 223.

 

9 NORONHA, E. Magalhães. Direito penal; dos crimes contra a pessoa. 26 ed. São Paulo, Saraiva, 1994, v.2, p.255.

 

10 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman, Santiago de Chile, Ed. Juridica de Chile, 1993, p. 83. 11 Vale destacar, conforme referencia Fernando Capez, que o Supremo Tribunal Federal fez a diferenciação entre: latrocínio e homicídio em concurso com roubo por ocasião do julgamento do HC nº 84.217/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ: 27-8-2004. Cf.: CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. 6ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, v.2, p. 424.

 

11 Vale destacar, conforme referencia Fernando Capez, que o Supremo Tribunal Federal fez a diferenciação entre: latrocínio e homicídio em concurso com roubo por ocasião do julgamento do HC nº 84.217/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ: 27-8-2004. Cf.: CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. 6ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, v.2, p. 424.


BIBLIOGRAFIA


CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, v.2.


FRAGOSO, H. C. Lições de direito penal – a nova parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. 
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955, v 1.


JESUS, Damásio E. de. Direito penal. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v 1.


JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en derecho penal. Madri: Civitas, 1999.


NORONHA, E. Magalhães. Direito penal; dos crimes contra a pessoa. 26 ed. São Paulo, Saraiva, 1994, v.2.


PRADO. Luiz Regis e BITENCOURT, Cezar Roberto. Elementos de direito penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.


STRECK, Lênio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.


WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. Santiago de Chile, Ed. Juridica de Chile, 1993.

 

*Júlio Medeiros é advogado criminalista e membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT


Contato: juliodemedeiros@hotmail.com
Página pessoal: www.criminalistanato.blogspot.com

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