Em virtude da pandemia do Covid-19 (novo coronavírus) a sociedade passa por uma espécie de cáos, nos apresentando uma nova realidade onde diversas informações surgem à cada momento, gerando inúmeras preocupações aos empresários. Neste cenário, parte delas se debruçam sobre a ordem econômica e tributária.
Caos
A necessidade de redução do contato físico social para suavizar o pico de contaminação por esse vírus acabou por impor abrupta transição para o trabalho remoto, que não foi absorvida de igual forma por todos os setores empresariais, de forma que a adaptação foi mais suave para alguns, e até mesmo impossível para outros, afetando inclusive na produção, e consequentemente, na receita das empresas, o que acabou por trazer à baila questões atinentes ao crimes tributários.
Neste viés, mesmo com as diversas medidas normativas apresentadas pelo Poder Executivo Federal, Estadual e Municipal pela postergação do vencimento de (alguns) tributos no fito de possibilitar que o contribuinte possa com esse valores manter sua produção e funcionários, o setor empresarial é tomado de dúvidas, sobretudo quanto aos crimes tributários, em decorrência da latente possibilidade de inadimplir os tributos e utilizar os valores que seriam destinados ao fisco para resguardar o funcionamento das empresas.
Retornando à voga tema que assombrou a classe empresária no final de 2019, o recente julgamento sobre crimes tributários pelo Superior Tribunal Federal, no Recurso em Habeas Corpus n. 163.334/SC, é novamente destaque e a classe empresarial urge saber se passado o prazo de suspensão do pagamento dos tributos, não tendo o empresário condições de pagá-los, poderá ser enquadrado no fato típico de um dos crimes tributários, acarretando em investigação policial, indiciamento, propositura de uma ação penal ou mesmo a prisão em qualquer uma destas fases?
O julgamento acima apenas confirmou o que a doutrina defende:
Primeiro: Elemento volitivo do tipo penal: necessidade de inequívoca intenção de fraudar o fisco, motivada pela retenção dos valores sem a intenção de repassá-los, ainda que posteriormente, para a Fazenda credora.
Primeiro: Elemento objetivo do tipo penal: devedor contumaz. Este de extrema importância e relevância, sobretudo, para diferir a natureza jurídica de ilícito civil (devedor de tributos) para ilícito penal (sonegador de tributos).
Este entendimento da Suprema Corte diverge do atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que entende ser prescindível o elemento subjetivo do tipo (dolo específico – vontade de sonegar o tributo), considerando ocorrido o delito no momento em que o tributo retido não é repassado ao fisco. Importante observar que o entendimento do STJ foi superado pelo julgamento do STF, intérprete e guardião da Constituição da República Federativa do Brasil.
A decisão do Supremo Tribunal Federal veio agasalhar a norma jurídica (vaga) de constitucionalidade, uma vez que, sendo a norma penal a medida extrema social, não se pode permitir que um ilícito civil seja considerado crime sem que se defina elementos claros a diferir o ilícito penal do ilícito civil.
Portanto, por este novo entendimento do Supremo Tribunal Federal não se pode enquadrar ao fato típico àquele que, sobretudo em virtude de colapso financeiro global, deixar de adimplir com suas obrigações tributárias, disposto no artigo 2º, II, da Lei Federal n. 8.137/90, tanto pela ausência de dolo específico: animus fraudandi (elemento volitivo do tipo); quanto pela não caracterização da elementar objetiva minimamente suficiente a se determinar este especial inadimplemento fiscal como fato típico penalmente punível:
“Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
[...]
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos
[...]
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.[1]
Ainda, outro delito tributário que também que gera preocupação na mesma proporção é o do artigo 2º, IV, da Lei Federal n. 8.137/90, que trata sobre malversação privada de recursos públicos, em decorrência de destinação diversa da estipulada pela norma criadora ou autorizadora do incentivo fiscal:
“Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
[...]
IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento
[...]
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.[2]
Aqui, embora as elementares objetivas sejam completamente diversas, também não é passível de enquadramento penal a utilização dos recursos relativos ao incentivo fiscal para executar os investimentos necessários e arcar com os custos inerentes à manutenção da operação do objeto social da empresa contribuinte durante a crise.
Isso se dá, também, em virtude de o objetivo do incentivo fiscal ser o crescimento e manutenção do empresa no mercado, gerando trabalho, renda e movimentação da economia, o que não deixa de ocorrer nessa fase critica.
Exceto a apropriação indébita previdenciária, que guarda certa semelhança ao julgado do STF comentado, os demais delitos tributários têm por objeto a fraude ao fisco por diversos meios, como declarações, se furtar das fiscalizações, prestar informações incorretas ou inexistentes, sendo característico em todos um ato visando alterar o quantum do tributo, ação totalmente diversa dos dois delitos comentados, onde não se busca alterar o tributo, apenas não se promove o seu devido adimplemento.
Em direito penal não há a possibilidade de alteração do ônus da prova, sendo elemento essencial para a configuração do fato típico a demonstração do elemento subjetivo do delito: animus fraudandi, sem o qual não subsiste sequer a investigação policial. Importante, também, ter claro que o direito penal não aceita a aplicação dos métodos dedutivo, indutivo ou qualquer outra modalidade intuitiva para a determinação do elemento subjetivo do tipo penal.
Este momento que passamos pede muita cautela e adoção de medidas atípicas para a manutenção da operação das empresas, o que deve ser estudado em cada caso concreto com o acompanhamento de equipe técnica qualificada, traçando metas e orientando corretamente como agir em cada caso.
Portanto a organização tributária para o enfrentamento da crise é essencial para sua superação pelas classe empresarial, e prevenção de situações de risco, sendo neste momento, extremamente necessário para prevenir futuros percalços fiscais, civis e penais.
Otávio Gargaglione é advogado criminalista, membro das comissões de Direito Penal e Processo Penal e de Direito Eleitoral da OAB-MT e do Tribunal de Defesa das Prerrogativas