A decisão do Supremo Tribunal Federal, que manteve com a Justiça Eleitoral a competência para julgar crimes conexos aos eleitorais, proferida na data de 14/03/2019, causou certo alvoroço social, notadamente àquelas pessoas que não são versadas nas ciências jurídicas e acompanham comentários de “especialistas de Facebook” ou de sofistas formadores de opinião.
Na ocasião, mais uma vez, foi necessário que um Ministro da mais alta Corte do país dissesse o óbvio: “Compete à justiça eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos”. Trata-se de fundamento basilar do processo penal brasileiro, ensinado já nos primeiros semestres da faculdade de Direito: havendo concorrência entre a justiça comum e a justiça especializada (eleitoral), os crimes conexos são “atraídos” para a competência especializada.
O fato pode ser bem mais simples do que parece. O primeiro passo para entende-lo, no entanto, é “esquecer” a “Operação Lava Jato e o seu “garoto propaganda” (Dallagnol), pois o Direito não gira em torno deles; ao revés, estes é que deveriam observar (e obedecer) àquele.
Assim, são sofismas sobremaneira reprováveis as recentes notícias e opiniões sugerindo que a decisão do Supremo Tribunal Federal, na data de ontem, seria um “ponto fora da curva” ou mesmo “um atentado ao combate da corrupção”, como defendeu Dallagnol, coordenador da multicidada “Operação Lava jato”.
A bem da verdade, nada mais fez o STF do que cumprir com a sua função institucional, qual seja, a de julgar, e o fazê-lo em consonância com a lei.
No caso em foco, a questão posta para análise resulta, basicamente, em duas indagações, quais sejam:(i)existe conexão entre os crimes comuns (v.g. corrupções, ativa e passiva, lavagem de dinheiro, etc.) com o “crime” de “Caixa 2"? Em sendo positiva a resposta, cabe indagar ainda: (ii)neste caso, a quem compete o julgamento desses crimes conexos?
Para responder a essas questões, deve-se advertir, primeiro, que a expressão “Caixa 02” foi uma nomenclatura “inventada”, sabe-se lá por quem, com finalidade nitidamente midiática, visando fomentar os debates políticos, sobretudo em períodos eleitorais (ou eleitoreiras) nos quais os candidatos, na maioria das vezes, por não terem boas propostas, empreendem seu tempo na desqualificação dos adversários políticos.
Há que se ter em mente, porém, que o multicitado “Caixa 02” nada mais é, na verdade, do que uma espécie de falsidade ideológica eleitoral (artigo 350, do Código Eleitoral ) e, por estar positivada em código específico, é especial em relação à falsidade ideológica “comum”, cuja previsão encontra-se no artigo 299, do Código Penal .
Com efeito, é justamente essa “especialidade” do artigo 350, do Código Eleitoral, que “atrai” a competência do julgamento para a Justiça Eleitoral, nos moldes do artigo 121, caput, da Constituição Federal de 1988, disciplinado pela da Lei nº 4.737, 15 de julho de 1965, notadamente no artigo 35, inciso II:
Constituição: Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.
Código Eleitoral: Art. 35. Compete aos juízes:
II - processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais.
Outrossim, dispõe o artigo 364, do Código Eleitoral, que, “no processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, assim como nos recursos e na execução, que lhes digam respeito, aplicar-se-á, como lei subsidiária ou supletiva, o Código de Processo Penal”.
Aqui reside o ponto nevrálgico da discussão: o Código Eleitoral, desde os longínquos anos 1965, já previa a competência da Justiça Eleitoral – que é especializada – para julgar os crimes eleitorais e os que lhes são conexos, bem como a aplicação subsidiária ou supletiva do Código de Processo Penal, no que dissesse respeito a processos e julgamentos.
O Código de Processo Penal, por sua vez, que se aplica subsidiária ou supletivamente ao Código Eleitoral, ao tratar da matéria de fixação competência, em seu artigo 78, inciso IV, (com redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948 – portanto, bem antes de o Deltan e a Lava jato existirem), não deixa qualquer brecha para interpretação dúbia, porquanto positiva, de forma clara, que:
Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras:
[...]
IV - no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.
Observe-se, assim, que nada está fora do plano legal/legislado. Todo o oposto! O entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal já eram nessa mesma linha, em absoluta atenção à norma extraída do artigo 35, inciso II, do Código Eleitoral, combinado com o artigo 78, inciso IV, do Código de Processo Penal.
A comprovar que o julgado de 14/03/2019 nada tem a ver com a “Operação Lava jato” ou com o “combate à corrupção”, como muitos querem fazer crer, leia-se precedente do pleno do Supremo Tribunal Federal, proferido na década de 90, pelo então Ministro Sydney Sanches:
“(...) em se verificando (...) que há processo penal, em andamento na Justiça Federal, por crimes eleitorais e crimes comuns conexos, é de se conceder habeas corpus, de ofício, para anulação, a partir da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, e encaminhamento dos autos respectivos à Justiça Eleitoral de primeira instância”
(CC 7033/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, de 2/10/1996 – grifou-se).
Mais recentemente, já no âmbito da “Operação Lava Jato”, o Supremo Tribunal Federal reafirmou, no bojo da PET 6820 AGR-ED / DF, esse mesmo entendimento:
De fato, o MPF foi categórico ao classificar o item 8.7 do referido depoimento como “DOAÇÕES, COM RECURSO DE CAIXA 2, AO PT E AO PSB (2010)”. Ocorre que, somente no momento de ofertar as contrarrazões ao agravo regimental, o Parquet, inovando com relação ao seu entendimento anterior, passou a sustentar que “a narrativa fática aponta, em princípio, para eventual prática de crimes, tais como corrupção passiva (art. 317 do Código Penal) e falsidade ideológica eleitoral (art. 350 do Código Eleitoral)”. Neste contexto, convém relembrar que o Código Eleitoral, em seu título III, o qual detalha o âmbito de atuação dos juízes eleitorais, é cristalino ao estabelecer, no art. 35, que: “Compete aos juízes (…) II - processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais”. Ora, como se sabe, o denominado “Caixa 2” sempre foi tratado como crime eleitoral, mesmo quando sequer existia essa tipificação legal. Não se olvide, ademais, que, recentemente, a Lei 13.488/2017 incluiu o art. 354-A no Código Eleitoral para punir com reclusão de dois a seis anos, mais multa, a seguinte conduta: “Apropriar-se o candidato, o administrador financeiro da campanha, ou quem de fato exerça essa função, de bens, recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral, em proveito próprio ou alheio”. Ainda que se cogite, apenas para argumentar, da hipótese aventada pelo MPF, a posteriori, segundo a qual também teriam sido praticados delitos comuns, dúvida não há, a meu ver, de que se estaria, em tese, diante de um crime conexo, nos exatos termos do art. 35, II, do referido Codex.
[...]
A mesma orientação se vê em julgados mais recentes, a exemplo da Pet 5700/DF, rel. Min. Celso de Mello, na qual a colaboração descrevia um suposto pagamento de “Caixa 2” para as campanhas, ao Senado, de Aloysio Nunes (PSDB) e Aloizio Mercadante (PT), ambos por meio de recursos de origem alegadamente ilícita da UTC Engenharia.
Naquele feito, o próprio Procurador-Geral da República à época opinou pelo desmembramento e remessa dos autos à Justiça Eleitoral por constatar a eventual prática do crime de “Caixa 2”, enquadrado no art. 350 do Código Eleitoral, em conexão com o crime de lavagem de dinheiro (art. 1°, § 1º, da Lei 9.613/98), ambos descritos na inicial da mencionada Pet 5700/DF.
Na mesma senda, ainda da lavra do Supremo Tribunal Federal, colhe-se o seguinte precedente, julgado em 27 de março de 2018:
Agravo regimental. Petição. Doações eleitorais por meio de caixa dois. Fatos que poderiam constituir crime eleitoral de falsidade ideológica (art. 350 do Código Eleitoral). Competência da Justiça Eleitoral. Crimes conexos de competência da Justiça Comum. Irrelevância. Prevalência da Justiça Especial (art. 35, II, do Código Eleitoral e art. 78, IV, do Código de Processo Penal). Precedentes. Remessa dos termos de colaboração premiada ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Determinação que não firma, em definitivo, a competência do juízo indicado. Investigação em fase embrionária. Impossibilidade, em sede de cognição sumária, de se verticalizar a análise de todos os aspectos concernentes à declinação de competência. Agravo regimental provido.
1. A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que, nos casos de doações eleitorais por meio de caixa 2 - fatos que poderiam constituir o crime eleitoral de falsidade ideológica (art. 350, Código Eleitoral) -, a competência para processar e julgar os fatos é da Justiça Eleitoral (PET nº 6.820/DF-AgR-ED, Relator para o acórdão o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 23/3/18).
2. A existência de crimes conexos de competência da Justiça Comum, como corrupção passiva e lavagem de capitais, não afasta a competência da Justiça Eleitoral, por força do art. 35, II, do Código Eleitoral e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal.
3. Tratando-se de investigação em fase embrionária e diante da impossibilidade, em sede de cognição sumária, de se verticalizar a análise de todos os aspectos concernentes à declinação de competência, o encaminhamento de termos de colaboração não firmará, em definitivo, a competência do juízo indicado, devendo ser observadas as regras de fixação, de modificação e de concentração de competência, respeitando-se, assim, o princípio do juiz natural (Inq nº 4.130/PR-QO, Pleno, de minha relatoria, Dje de 3/2/16).
4. Agravo regimental provido, para se determinar a remessa dos termos de colaboração premiada ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, para posterior encaminhamento ao juízo de primeiro grau competente.
(STF - Acórdão Pet 7319 / Df - Distrito Federal, Relator(a): Min. Edson Fachin, data de julgamento: 27/03/2018, data de publicação: 09/05/2018, 2ª Turma)
A título conclusivo, a fim de afastar do julgamento midiatizado – que sedimentou, acertadamente, conquanto de forma demorada, a competência da justiça eleitoral para julgar os crimes eleitorais e os que lhes forem conexos– qualquer pecha de ilegalidade, veja-se recente decisão monocrática do Ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça, na qual faz menção a outros julgamentos, bem anteriores à “Operação Lava jato” e o surgimento do Procurador Dallagnol:
Há muito firmou-se jurisprudência nesta Corte Superior acerca do tema, consolidando o entendimento de que em havendo conexão entre crimes comuns e eleitorais a competência para seu julgamento e processamento será da Justiça Eleitoral.
Destaco:
"PENAL E PROCESSO PENAL - CRIME ELEITORAL E COMUM -CONEXÃO - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL.
- Ocorrendo crime eleitoral e comum (conexos), a competência para processar e julgar ambos os delitos é da Justiça Eleitoral.
- Precedentes (CC 16.316/SP, Rel. Min. Felix Fischer).
- Conflito conhecido, declarando competente o Juízo Eleitoral da 15ª Zona de Caiçara/PB."
(CC 28.378/PB, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/09/2000, DJ 27/11/2000).
In casu, em análise perfunctória restrita, própria dessa via e desse momento processual, houve motivo eleitoreiro nas ofensas e demais condutas típicas descritas quando da abertura do IPL, tornando a Justiça Eleitoral competente para o processamento e melhor exame dos fatos.
[...]
Ante o exposto, conheço do conflito para declarar a competência do Juízo Eleitoral da 1ª Zona Eleitoral de Maceio - AL, o suscitante.
(STJ - CC: 144322 AL 2015/0300993-7, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 18/06/2018)
Dessa forma, tendo em vista os variados julgamentos colacionados, tanto anteriores quanto posteriores à “Operação Lava Jato”, é notório que a midiatização feita em cima da decisão do Supremo Tribunal Federal, em 14 de março de 2019, para além de ser infundada, mostra-se totalmente leviana, típica de uma dialética sofística, cuja forma é falsa, mas aparenta ser verdadeira.
Assim, o julgamento nada mais fez do que sedimentar um posicionamento que já era adotado há décadas (inclusive citado nos votos dos Ministros) pelo Supremo Tribunal Federal, razão pela qual o erro seria entender diversamente, apenas porque os procuradores da Lava Jato assim o queriam.
Nada obstante, conquanto se possa dizer, por um lado, que o Supremo acertou ao decidir como o fez, por outro, visualiza-se campo para a crítica, decorrente da demora na “pacificação”de tema tão sensível e com efeitos tão amplos e polêmicos.
Diante desse cenário, o próprio Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, relator do caso em questão, já se pronunciou vaticinando que sentenças poderão ser anuladas por força do entendimento atual . Malgrado o entendimento do Eminente Ministro Marco Aurélio, a seguir uma teoria séria e própria do direito processual penal acerca das nulidades, a mácula da incompetência não atingirá apenas a sentença.
Assim se argumenta, na medida em que, em se tratando do tema competência material, a nulidade gerada pela incompetência é absoluta e não só pode como deve ser reconhecida a qualquer tempo, em qualquer grau de jurisdição, inclusive ex officio. Disso deflui que, se houve corrupção ou lavagem de dinheiro, por exemplo, atreladas ao “crime de caixa 2”, o processo conduzido pelo juízo comum restará nulificado, nos moldes do artigo 564, inciso I, do Código de Processo Penal, aproveitando-se somente os atos meramente ordinatórios, despidos de qualquer conteúdo decisório (art. 567, CPP).
Nesse contexto, não se pode negar que os efeitos ex tunc decorrentes da decisão confirmada pelo Supremo serão delicados, polêmicos e abrangentes (como tudo o tem sido, hodiernamente, no Brasil), porquanto,a valer a atual dogmática, a nulidade, por ser absoluta, deverá alcançar até mesmo a decisão de recebimento da denúncia – a qual possuiu, por óbvio, carga decisória –, o que potencialmente redundará na nulidade de todo o processo, desde o início (ab initio).
Desse modo, em apertada síntese,pode-se concluir que os efeitos da atual jurisprudência (agora pacificada) repercutirão, fatalmente,em diversos casos não só da “Operação Lava jato”, mas de todo o País, inclusive em Cuiabá, Mato Grosso, havendo chances reais e efetivas de, declarada a nulidade total do processo, operar-se a prescrição, extinguindo-se a punibilidade dos agentes, já que os atos praticados pelo juiz absolutamente incompetente (notadamente o recebimento da denúncia, como primeiro marco interruptivo prescricional) não podem produzir efeitos no mundo jurídico.
* Valber Melo e Filipe Maia Broeto são advogados em Mato Grosso