A incapacidade do ser humano de aceitar os outros da forma como eles são alimenta a intolerância, que “corre solta” entre nós, fazendo vítimas no campo moral e também no físico, podendo resultar, até mesmo, em morte, quando o radicalismo deixa cego aquele que se julga com autoridade para determinar o comportamento alheio.
No atual mundo globalizado das mídias sociais de comunicação instantânea, em que todos aparentam ter o que dizer sobre tudo e sobre todos, seria desejável que exercitássemos também nossa capacidade de ouvir o outro, de permitir que ele se manifeste e que, enfim, possa existir do jeito como é.
A democracia que desejamos no campo social e político começa com o exercício do respeito à igualdade nos relacionamentos menores, desde o que se refere ao mundo afetivo, ao ambiente de trabalho, dentre outros âmbitos de sociabilidade.
A intolerância parece ser a mãe de todas as formas de cólera e de violência, que podem desandar em sérios distúrbios de ordem psíquica, que acabam aportando no Poder Judiciário, como rito de passagem para o mundo dos presídios para uns, e para o túmulo, para outros.
Neste contexto de intolerância, pretendo abordar um tema muito incômodo e aterrador, na verdade. Trata-se do homicídio praticado contra a mulher, precisamente por sua condição de ser do sexo feminino, mais propriamente denominado de feminicídio.
É assustador o tanto de mulheres que têm sido assassinadas em Mato Grosso nos últimos tempos, e o que é pior, com requintes de crueldade. E muitos desses homicídios são por decorrência da discriminação que ainda hoje as mulheres sofrem por parte de seus namorados, maridos ou outros tipos de relacionamentos.
O crime denominado feminicídio foi introduzido em nosso sistema jurídico pela Lei nº 13.104/2015, que inseriu o inciso VI no § 2º do art. 121 do Código Penal, qualificando o homicídio praticado contra vítima mulher, por razões de gênero, que decorrem do menosprezo ou da discriminação à condição de mulher.
Ainda que todo homicídio seja execrável, nem todo crime de morte praticado contra uma mulher será necessariamente classificado como feminicídio, mas somente aquele que contenha em suas circunstâncias o aspecto de repugnância, rejeição ou intolerância à condição de mulher, como é o caso, por exemplo, do marido (ou namorado) que, não conseguindo sucesso na tentativa de subjugar sua esposa (ou namorada) aos seus caprichos, mata-a por considerar em sua “paranoia” que ela não tem o direito de se separar dele.
O feminicídio pode ocorrer, ainda, quando há morte (ou tentativa) da mulher no contexto da violência doméstica e familiar, também pela simples condição do sexo feminino da vítima, e nesse particular não se confunde com as medidas protetivas asseguradas pela Lei nº 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, porque não há tipificação de crime nessa lei.
Merece destaque o fato de que a intolerância parece ter aumentado desde a edição em 2006 da citada Lei Maria da Penha, haja vista a necessidade encontrada pelo legislador de ampliar o rol de crimes de homicídio qualificado, inserindo mais esta figura delituosa, que significa, em síntese, que a pena, que era de reclusão, de seis a vinte anos, para o homicídio simples (como era classificado antes da Lei nº 13.104/2015), aumentou para reclusão, de doze a trinta anos, caso se configure o feminicídio.
O menosprezo a alguém por conta do gênero com que nasceu é, na prática, a demonstração de ódio por todo o gênero (no caso, é a manifestação da chamada misoginia), e não apenas por uma pessoa especifica e foi precisamente isso que foi reconhecido recentemente em nosso sistema jurídico penal, com a edição da Lei nº 13.104/2015, que busca chamar a atenção para este tipo absurdo de aversão às mulheres, e rechaçar este sentimento machista que ainda prevalece em algumas mentes, que procuram, ainda que de forma oculta e disfarçada, impor às mulheres alguma forma de submissão, de inferioridade ou de subserviência.
Este cenário tenebroso em pleno século 21 não favorece Mato Grosso, que de forma vergonhosa tem sido apontado reiteradamente por pesquisas na seara criminal como o estado que supera a média nacional neste tipo de crime.
A situação é muitíssimo preocupante, a demandar estudos de profissionais das ciências sociais e de demais áreas afetas ao tema, com subsídios de uma eficiente política criminal, tudo com o objetivo de tentar estabelecer os fatores preponderantes para a conduta insana e inaceitável dos criminosos, bem ainda, principalmente, para buscar solução para este gravíssimo problema social, pois a vida deve sempre ser preservada. Parece-me que, em que pese a bem-vinda lei que criou o tipo penal feminicídio, mais e melhores estratégias (principalmente sociais e educacionais) precisam ser implementadas.
Quero crer que a solução, como para tantos outros problemas similares, passa necessariamente pela mudança de comportamento (obviamente), o qual se altera com mudança de cultura (de valores, de princípios), que tem a ver com educação e com outras práticas de natureza social, que incentivem a inclusão, o respeito ao outro, ao desigual, às minorias.
Precisamos aprender a praticar a alteridade, a tentar nos colocar no lugar do outro, para que possamos ver do ponto de vista com que ele nos vê.
Se o presente está tão drástico e lastimável, não podermos permitir que o futuro repita os mesmos erros! A mudança precisa ser incentivada a partir da educação fundada em rígidos princípios morais, começando em casa e aprofundando na escola, com professores bem preparados e bem remunerados, que incentivem nos alunos um aprendizado mais humano e reflexivo.
Ademais, e por conclusão, o feminicídio pode ser evitado com razoáveis chances de sucesso. Basta que as mulheres se conscientizem de seu relevante papel na sociedade, a qual tem para elas o mesmo espaço dedicado aos homens. Não podem aceitar passivas o papel de coadjuvantes ou o segundo plano na vida, comparativamente ao homem com quem convivem. Ao menor sinal de maus tratos, deve ela se impor como ser humano que também é, como cidadã que merece ver respeitada sua dignidade.
A omissão de uns pode alimentar a paranoia de outros, não lhes permitindo ver com clareza a realidade.
A dignidade não se pede. Impõe-se. Dai porque os relacionamentos precisam ser sadios, respeitosos, porque o ser humano nasceu para ser feliz, para brilhar, não para ser ofuscado pela sombra alheia.
Em pleno século 21 não se pode admitir este espetáculo lúgubre do feminicídio em massa.
*Gisele Nascimento é advogada, membro da Comissão da Defesa da Mulher do Estado de Mato Grosso.