A indenização por dano moral é hoje uma realidade indiscutível, consagrada que está no próprio texto constitucional (CF, art. 5º, incs. V e X). Em todo tipo de interação social, seja nas relações entre vizinhos, entre fornecedor e consumidor, no âmbito do trabalho ou em qualquer outro espaço de convívio social, podem ocorrer situações em que alguém se sinta desrespeitado em seus direitos, tanto de ordem material quanto no aspecto psicológico, hipóteses em que eventualmente pode surgir um dano de natureza moral.
Especificamente no contexto da prestação de serviço ou da comercialização de produtos, há possibilidade de um conflito de interesses resultar numa situação de violação de direitos da personalidade, quando uma das partes não atentar para o dever de tratar a outra com urbanidade e respeito, porque, afinal de contas, isso está dentro do conceito de dignidade da pessoa humana, valor maior que norteia todo o ordenamento jurídico.
O crescimento do mercado de consumo, tão desejado por todos os que trabalham na iniciativa privada, e que produz riquezas e alavanca a economia, pode contribuir infelizmente para ampliar a possibilidade de falha na prestação do serviço ou no fornecimento do produto, se esse incremento nas vendas ou na prestação de serviços não vier acompanhado pelo correspondente aumento de zelo, cautela e controle. Não havendo satisfação do consumidor, podem surgir divergências inconciliáveis, aptas a ensejar algum atrito maior, se não houver bom senso para discutir e solucionar o problema.
Para tais circunstâncias, não havendo condições para a solução amistosa do problema na relação negocial, a legislação prevê a possibilidade de provocação do Poder Judiciário para eventual incidência do dever de indenizar aquele que tenha sido ofendido em sua esfera moral, o chamado dano moral.
Com o incremento deste tipo de ação judicial, cresceu também a ideia de que estaria ocorrendo uma banalização do referido instituto, repercutindo no convencimento de alguns julgadores acerca do então considerado uso excessivo desta prerrogativa legal, ao entendimento de que muitos consumidores, talvez na intenção de obter ganho financeiro fácil, estariam vulgarizando tão desejável tipo de reprimenda do Estado-Juiz ao fornecedor faltoso. Daí surgiu a expressão pejorativa “indústria do dano moral”, para abarcar os casos em que, de forma recorrente, o pedido daqueles que se sentiam lesados não correspondia ao que estava narrado e provado no processo.
E assim, a suposta banalização do dano moral acabou por também banalizar, a contrário senso, a injusta ofensa moral, variando amplamente a jurisprudência acerca do tema, alguns magistrados aplicando valores significativos para punir e demover o infrator de nova prática deste tipo de conduta, e, por outro lado, alguns outros asseverando que algumas condutas não passam de “mero aborrecimento”, típico do convívio social. Dessa forma bem básica de se pensar o problema, partimos de uma ideia de construção da indústria do dano moral para a hipócrita tese da indústria do mero aborrecimento.
Qual seria mais perniciosa para a sociedade: aplicar a sanção da indenização por dano moral “a torto e a direito”, para usar uma expressão coloquial, ou indiscriminadamente deixar de aplicar a referida penalização, ao entendimento de que tudo não passa de mero aborrecimento?
Ocorre que quantificar uma dor psicológica não é fácil, porque cada ser humano é um universo particular, com seus valores de vida, seus princípios morais, suas convicções sociais, religiosas, filosóficas, seus melindres, seus recalques de natureza psicológica etc. há um mundo de subjetividade neste contexto, precisamente porque ninguém é igual a ninguém. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, como já disse o poeta certa feita .
Por tudo isso, creio que seria mais justo e prudente deixar que cada magistrado use de seu discernimento para proferir uma decisão motivada, que contemple cada caso concreto que lhe seja apresentado, mesmo sabendo, de igual forma, que cada juiz tem também seu universo particular de valores e princípios éticos, que não se iguala ao de qualquer outro juiz.
Mas uma coisa se mostra inquestionável: não parece que o magistrado possa, do alto de sua suposta suprema sapiência, dizer que uma ofensa moral constitui mero aborrecimento. Isso equivale, na maioria das vezes, ferir uma segunda vez aquele que já se sente ferido em sua honra, aviltado em sua relação com o outro.
Em geral, quando o lesionado recorre ao Poder Judiciário em busca de tutela, é porque não foi ouvido, porque esta é sua derradeira esperança de justiça. Não busca enriquecimento ilícito (salvo os casos claramente absurdos), mas reparação por alguma conduta que o tenha feito sofrer intimamente, o que deve ser analisado pelo juiz com equidade, imparcialidade, serenidade e respeito.
Com todo o respeito devido aos que pensam de forma diversa, o que se percebe nas hipóteses dos que, de modo uniforme e linear, atestam tratar-se de “mero aborrecimento”, é que eles optam por se mostrarem distantes e insensíveis aos problemas alheios, não desenvolveram a capacidade de empatia, a habilidade de se colocarem no lugar do outro.
E aí, por óbvio, tratam de forma fria e indiferente o problema que se lhes é apresentado, distanciando-se de sua condição de pessoa, talvez pelo equivocado hábito de alguns de se colocarem acima dos demais seres, alheios ao problema do outro. Confundem a necessidade de serem imparciais com frieza, equidistância com distanciamento.
Com a devida vênia, isso não se coaduna com o universo do Direito, que existe para proteger e implementar a condição humana, a dignidade da pessoa, para promover a paz social. E não há paz quando a dignidade é ofendida. Até por isso, que o ordenamento jurídico tem promovido meios consensuais de solução de litígios, para que as partes se convençam, elas mesmas, que a solução encontrada é a mais justa para todos.
Hoje o que se vê é, na prática, o oposto, pois tem crescido a insatisfação com decisões judiciais que insistem em não vislumbrar ofensa moral em diversas situações claramente abusivas. O grito de socorro dos pequenos precisa ecoar no coração de quem tem o poder final de calar o opressor, de impor um desassossego no grande que age com injustiça e prepotência sobre o hipossuficiente.
Ademais, ao meu ver, é extremante precipitado falar que mero aborrecimento não possui relevância jurídica, e que por isso não comporta indenização por eventual dano moral, como forma de barrar uma possível “fábrica do dano moral”. Qualquer abuso de direito é pernicioso, tanto quanto qualquer tentativa de fazer prevalecer um determinado entendimento a priori, sem análise sensata caso a caso.
A prevalecer esse tipo de indevida generalização da denegação do direito à indenização e de banalização do abuso moral, conduta que está promovendo verdadeira indústria do “mero aborrecimento”, obstado estará o exercício da garantia constitucional de acesso ao Judiciário.
Além de tudo o que já foi dito, penso que não dá para falar em “indústria” ou “fabrica” do dano moral, pois não existe uma associação de consumidores, ou acordos tácitos e implícitos (como um inconsciente coletivo preordenado para tal propósito), ou qualquer outro possível tipo de “associação criminosa” formada para burlar tal instituto, para vulgarizá-lo.
Aquele que sofre dano e pede uma reparação o faz quase sempre em seu nome, de forma individual, de acordo com princípios e valores pelos quais conduz sua vida em sociedade e, especialmente, segundo sua honra subjetiva. Dessa maneira é temerário falar em banalização do dano moral, assim como que mero aborrecimento não gera o direito de reparação.
É enorme o perigo que corre o Poder Judiciário ao nominar de “mero aborrecimento” (e assim chancelar) condutas desviantes de alguns fornecedores, como a desídia em solucionar problemas a que eles mesmos eventualmente tenham dado causa por desrespeito, abuso consciente, defeito na prestação do serviço, falha no atendimento aos consumidores, cobranças abusivas, descumprimentos contratuais e tantas outras práticas indevidas que não deveriam ser amparadas sob o falacioso argumento de "mero aborrecimento", pois todas são condutas vedadas pelo Código de Defesa do Consumidor, aptas a gerar lesão à honra subjetiva do indivíduo, pois interferem diretamente em sua dignidade, afetando sua qualidade de vida.
Em grande parte das vezes em que o Poder Judiciário se utiliza do perigoso e enganador argumento do “mero aborrecimento”, sob o pretexto de erradicar o que denomina de “indústria do dano moral”, pode estar, em última análise, deixando de observar a lei que tutela direitos do consumidor e desrespeitando o preceito constitucional, na figura da garantia de que a violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas será coibida com a sanção a que se referem os dispositivos do art. 5º, V e X, da Carta.
As reiteradas decisões judiciais que atestam o “mero aborrecimento” em casos de desrespeito ao consumidor acabam estimulando o “mero abuso”, consistente na conduta de alguns fornecedores, eventualmente de poucos escrúpulos ou simplesmente pouco cuidadosos, de que vale a pena ser negligente com os consumidores ou ser descuidado com a qualidade dos produtos e serviços colocados no mercado de consumo, subjugando (e eternizando) a situação de vulnerabilidade vivenciada pelo consumidor, e que a duras penas foi contemplada pela legislação consumerista.
O assunto é tão relevante que avultam movimentos impulsionados pela Ordem dos Advogados do Brasil, inclusive por parte OAB/MT por intermédio da Comissão de Defesa do Consumidor, que visam mobilizar e conscientizar a sociedade quanto à postura adotada por alguns magistrados mais conservadores, no sentido de que o mero aborrecimento tem valor e DEVE ser compensado.
Tal movimento é de fato necessário, pois chegou ao cúmulo de se considerar que a utilização ilícita do nome da pessoa mediante fraude, por exemplo, na indevida abertura de crédito, financiamentos, empréstimos, contas bancárias, habilitação de linha telefônica, sem a ocorrência de negativação indevida, não gera dano moral, mas mero dissabor, ou em outras palavras, mero aborrecimento.
Nestas situações até mesmo o leigo se pergunta: Mas como assim? O nome da pessoa não tem proteção constitucional? Para a assinatura de um contrato de prestação de serviço não precisa da manifestação livre de vontade? Aquele que gera dano a outrem não fica obrigado a repará-lo?
Se até o morto possui tutela do ordenamento jurídico com mais razão ainda a pessoa viva!
Esses atos graves e ofensivos à honra, intimidade, privacidade, dignidade da pessoa, em algumas demandas judiciais têm sido considerados como mero dissabor, mero aborrecimento, gerando muita indignação na sociedade e, obviamente, da classe dos advogados.
Isso é muito preocupante, pois desconstrói aos poucos a segurança jurídica que se espera dos Poderes constituídos. E, infelizmente, tem este famigerado entendimento crescido pelos Tribunais e Juizados Especiais Brasil afora.
A Justiça acaba por ficar desmoralizada, porque os destinatários de suas decisões, os menos aquinhoados, não se sentem contemplados em seus anseios legítimos. É como o povo tem se sentido, desprotegido, inseguro.
A intenção desse artigo não é obviamente esgotar o tema.
É, sem muitas pretensões, conclamar a uma reflexão crítica da realidade aqui superficialmente tratada, e conduzir uma primeira conclusão no sentido de que a reiterada utilização da malfadada “indústria do mero aborrecimento”, como espécie de excludente de ilicitude no âmbito das relações de consumo, pode ser muito mais maléfica para a sociedade do que a tão propalada e pouco estudada (nem comprovada) “indústria do dano moral”.
É preciso que o Judiciário fique atento à mensagem que reiteradamente tem remetido ao mercado com suas sentenças, pois cada vez mais tem disseminado a ideia de injustiça social, e, principalmente de que justiça é para um grupo seleto.
O comerciante é um herói que sobrevive num mundo de excesso de tributação, mas isso não lhe dá o direito, na condição de fornecedor de serviços ou de produtos, de aviltar o consumidor em seus direitos e garantias. E o Poder Judiciário não pode omitir-se em seu papel relevante neste cenário.
Afinal, se o constituinte originário preocupou-se em inserir na Lei Maior um dispositivo expresso prevendo a sanção de indenização para a hipótese de conduta geradora de dano moral, foi porque um clamor social já exigia algum tratamento para, em tese, equiparar ofensor e ofendido, haja vista a proibição de fazer justiça com as próprias mãos.
Ademais, juiz precisa observar a Constituição, e isso, pelo que entendo, não se coaduna com a postura cômoda de negar o pedido de indenização por dano moral sob o fundamento de constituir-se a conduta atacada na abominável figura do mero aborrecimento, salvo, evidentemente, nos casos absurdos em que reste caracterizado excessivo e injustificável melindre do autor, o que também, por outro lado, poderia gerar-lhe consequências prejudiciais, pois Juiz deve ser a ‘manifestação do Direito e não dá sua vontade’, consoante disse ontem a ministra Carmem Lúcia.
*Gisele Nascimento é advogada, especialista em Direito Civil e Processo Civil e pós-graduanda em Direito do Consumidor e membro da Comissão de Defesa da Mulher OAB-MT.