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Miserabilidade e gratuidade de justiça

Data: 09/08/2017 13:41

Autor: *Luciana Póvoas Lemos

    Em nosso exercício profissional temos visto reiterados indeferimentos de pedidos de gratuidade de justiça, presumindo o Magistrado a inexistência de hipossuficiência, com base tão somente em diligências por ele realizadas em mídias sociais, ou em informações sobre o local de domicílio do requerente, valor de sua fatura de energia elétrica, dentre outros fatores circunstanciais.

    É cediço que o benefício da justiça gratuita tem previsão constitucional no Artigo 5º, LXXIV, da Carta Maior , e objetiva evitar que a falta de recursos financeiros constitua óbice intransponível ao acesso à Justiça.

    A teor do Artigo 98, do CPC, faz jus ao benefício da gratuidade aquela pessoa com “insuficiência de recursos para pagar as custas, despesas processuais e honorários advocatícios”, significando que o legislador não exigiu prova de miserabilidade, nem estado de necessidade para caracterizar a hipossuficiência hábil a ensejar a concessão do benefício.

    A Lei não fala em números, não estabelece parâmetros.

    O legislador expressamente consignou que o indeferimento do benefício deve estar fundado na existência de indícios nos autos do não preenchimento dos requisitos para a concessão da gratuidade, significando que ao julgador não é lícito presumir a inexistência do pressuposto da hipossuficiência, com base tão somente em diligências por ele realizadas em mídias sociais.

    O Artigo 2º, da Lei n.º 1.060/1950 foi revogado pela nova ordem processual civil.

    Nesse sentido, é possível que a parte não seja capaz de suportar as despesas processuais, sobretudo em demandas que envolvam valores vultosos, mesmo que ostente situação de aparente estabilidade financeira, até mesmo porque referidas despesas abrangem não apenas as custas e taxas judiciais, mas também a perícia, as despesas com publicação na imprensa oficial, os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial, dentre outros custos que podem inviabilizar o acesso da parte ao Judiciário para a tutela do direito material (Art. 98, § 1º, CPC).

    É dizer, a gratuidade de justiça é mecanismo de viabilização do acesso à justiça, não sendo razoável exigir, à luz da dignidade da pessoa humana, que para ter acesso à justiça, o sujeito tenha que comprometer significativamente sua renda, desfazer de seus bens, de seus instrumentos de trabalho, liquidando-os para arregimentar recursos e custear o processo.

    É perfeitamente admissível, portanto, que a pessoa natural, mesmo com razoável renda mensal, seja merecedora do benefício, e que também o seja aquele sujeito proprietário de bens imóveis, mas não dispõe de liquidez para suportar o pagamento das despesas processuais.

    Demais disso, para cada aparente circunstância de autossuficiência pode haver um fator ignorado pelo magistrado, como por exemplo, o fato de a parte possuir aparelhos de monitoramento de suporte a enfermos (home care) que eleve sobremaneira sua fatura de energia elétrica, ou estar sempre em viagens por ser representante comercial... Essas e outras várias circunstâncias podem ser desconhecidas pelo Juízo, sobrelevando a importância de o julgador oportunizar à parte justificar o fator que indicou ao magistrado aparente situação de autossuficiência de recursos, antes de indeferir a concessão da gratuidade, sob pena de flagrante violação aos Princípios da Vedação à Decisão Surpresa (Art. 10, CPC) e do Acesso à Justiça (Art. 5º, XXXV, CF).

    Aliás, a previsão insculpida no § 4º, do Artigo 99, do CPC, veda o indeferimento da gratuidade de justiça fundamentado apenas no fato da parte ser patrocinada por advogado particular, significando que nem mesmo a assistência por advogado particular é suficiente para elidir, por si só, a presunção de hipossuficiência, quanto menos o bairro onde mora, o carro que possui, o valor da fatura de energia elétrica, ou achados em mídias sociais, dentre outros.

    Por outro lado, é certo que a presunção de hipossuficiência não é absoluta. É o que se extrai do § 3º, do Artigo 99. Também é certo que em reverência à boa-fé e ao dever de cooperação é dado ao magistrado diligenciar em busca da verdade real. No entanto o legislador expressamente consignou que o indeferimento do benefício deve estar fundado na existência de indícios nos autos do não preenchimento dos requisitos para a concessão da gratuidade, significando que ao julgador não é lícito presumir a inexistência do pressuposto da hipossuficiência, com base tão somente em diligências por ele realizadas em mídias sociais (Art. 99, § 2º). Mesmo nesses casos, repita-se, deve o magistrado – comando compulsório - oportunizar à parte demonstrar sua condição de hipossuficiente antes de indeferir o requerimento, mesmo que exista elementos nos autos indicativos do não preenchimento desse pressuposto (Art. 99, § 2º, parte final).

    A análise da hipossuficiência deve ser feita criteriosamente, caso a caso, e encontradas outras soluções para equacionar as contas do Poder Judiciário, reduzindo a quota de participação do Poder Público no custeio do processo, sem que se subtraia do jurisdicionado o direito constitucional de acesso à Justiça. Nessa perspectiva, a modulação do benefício na forma de parcelamento das despesas, abrangência da gratuidade ou desconto no valor dos adiantamentos (§§ 5º e 6º, do Artigo 98, do CPC), afigura-se como alternativa para situações limítrofes, nas quais o requerente não é notoriamente pobre e ainda assim não consegue suportar as despesas processuais, análise que cumprirá ao magistrado fazer em prol de viabilizar o acesso à Justiça.

*Luciana Póvoas Lemos é advogada e vice-presidente da Comissão de Direito Civil e Processo Civil da OAB-MT

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