As adversidades do tempo presente, seja no âmbito nacional ou regional, provocam-me a debruçar com demasiado sentimento de incômodo sobre os valores e princípios tão caros trazidos pela Constituição Federal (1988), e que por vezes têm sido tratados como mero enfeite legislativo. As buscas que tenho empenhado no meu cotidiano se dão pelos propósitos que sustentam a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT), e para que a entidade seja pautada pela irredutível idoneidade que a advocacia exige de nós, seus operadores.
O escândalo dos grampos telefônicos sob investigação, que visava monitorar cidadãos sem o propósito que se adeque ao devido procedimento legal, amputou com a mais possível crueldade os princípios basilares apregoados pela Carta Política. Esse é, sem dúvida, um dos maiores escândalos de nosso Estado em todos os tempos. Uma ofensa à democracia.
Antes de adentrar na tese mais profunda em defesa da liberdade, invoco o Artigo 3º da Constituição, que diz: constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária. A liberdade é uma das premissas mais defendidas pela Constituição, sendo repetida 17 vezes no texto em vigor. A palavra ‘livre’ também tem amplo espaço com 28 repetições. Enquanto que palavras como prisão e condenação têm nove e três citações, respectivamente.
Essa característica, embora na hermenêutica exegética da Constituição não queira significar muita coisa, é ao menos um indicativo poderoso de como o legislador constituinte prezou para que a sociedade brasileira fosse baseada sobre ideias de liberdade e não de aprisionamento.
Imagine você viver sob velado medo ou angústia de ter sua privacidade invadida 24h por dia? Já pensou ter que cuidar o máximo possível para não dizer certas coisas no foro da privacidade pelo medo de estar sendo observado por alguém? Evidente que viver dessa forma é insuportável. Mais insuportável ainda é se ver surpreendido vítima do que popularmente é conhecido por arapongagem. Essa situação, em absoluto, não combina com Estado de Direito, com a República. Isso remonta a uma página sombria na história do Brasil que deve ser apagada: o regime ditatorial.
Prezando pela autonomia e dignidade da pessoalidade, que o legislador constituinte dispôs no artigo 5º, XII, que é inviolável o sigilo das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
A partir disso, muita jurisprudência já foi formada no Brasil, entre as quais está a Lei Nº. 9.296/1996, que dispõe no artigo 2º, I, que não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal.
Também o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou, por provocação da OAB, a Resolução Nº 59, de 9 de agosto de 2008, na qual faz diversas recomendações de como deve proceder o magistrado e os agentes envolvidos nas interceptações judiciais, o que na prática assume uma função de controle sobre o uso moderado em relação aos pedidos de interceptação.
Cabe ressaltar que a legislação acima citada é clara ao demonstrar que o chamado grampo telefônico só pode ocorrer quando existem evidências razoáveis da autoria em crime do eventual interceptado. Essa tese se contrapõe exatamente ao fato de que as interceptações autorizadas em Mato Grosso foram configuradas com a chamada “barriga de aluguel”, que é quando a autoridade pede ao juiz que números diversos daqueles que são objeto de investigação criminal sejam também alvo de interceptação.
A OAB-MT não vai se calar jamais diante do fato de ter membros de suas fileiras subjugados a este recurso, que como ora defendido deve ser usado e mantido na esfera da razoabilidade e do compromisso contínuo que os operadores do Direito em nome da Justiça o fazem para investigação que traga evidências razoáveis.
Não há justificativas para o que foi feito em relação aos grampos. A população tem acompanhado pela mídia o desenrolar dos fatos com ar de espanto e dúvida se de fato vivemos em um Estado onde está garantida a proteção e não a ameaça. Estamos falando de um estado democrático de Direito, onde não é admissível que forças unilaterais exerçam seu poder de cima para baixo, sem o mínimo de respeito à liberdade, ou quando a força for punitiva, depois do devido processo legal.
A OAB-MT vai continuar firme em suas posições, e não queremos nada menos que a verdade ou a incansável busca pela mesma. Os responsáveis pelo escárnio deverão se acertar com a Justiça e com a sociedade, que não admite mais ter seus direitos cerceados pela indisciplina ou malícia de se usar das garantias legais do cidadão como se fossem meros enfeites legislativos. Não podemos brincar de ser República. Não podemos ensaiar a liberdade. Ou sejamos livres, ou lutaremos até o fim para que isso seja irrefutável.
*Leonardo Campos é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT)