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Ação Civil Pública não serve para rever honorários

Data: 12/07/2011 14:00

Autor: Gisela Gondin Ramos

 

       Há poucos dias o Ministério Público Federal, através da Procuradoria da República em Jales (SP), ajuizou Ação Civil Pública contra vários advogados, acusando-os de cobrança abusiva de honorários pleiteando, por conta disto, a revisão judicial dos respectivos contratos de honorários. A pretensão ministerial, entretanto, não pára no pedido de revisão das cláusulas contratuais objeto da demanda, mas quer, também, que o juízo crie novas regras para a contratação de honorários entre advogados e clientes.
 
      Dentre outras exigências, pois, pretende o MPF que a Justiça Federal determine: o percentual máximo de 20% (vinte por cento) na pactuação da verba honorária; a anulação dos poderes conferidos, em procuração, para receber e dar quitação de valores; a proibição de levantamento de quaisquer quantias em nome do cliente, ou a título de honorários; a exigência de que em todas as ações ajuizadas sejam obrigatoriamente juntados os respectivos contratos de honorários; e, ultrapassando todos os limites do razoável, seja determinada “obrigação de não fazer” consistente na proibição de futuros ajustes contratuais da verba honorífica em percentuais acima do arbitrado pelo juízo.
 
       Com todas as vênias, não apenas a via eleita pelo MP é inadequada, como também a sua ilegitimidade é inconteste, já que a situação descrita versa sobre direitos individuais disponíveis, sem a característica da homogeneidade e, portanto, insuscetíveis de defesa pela via da Ação Civil Pública. Neste sentido, cumpre destacar, primeiramente, que a ação civil pública nasceu como instrumento processual adequado para coibir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, atendendo, assim, aos interesses coletivos da sociedade. Trata-se, pois, de uma ação onde o MP atua como substituto processual da sociedade e, como tal, cabe-lhe a defesa dos chamados direitos ou interesses transindividuais e indisponíveis. De se notar, entrementes, que a própria Constituição Federal, através de seus artigos 127 e 129 desautorizam o uso da Ação Civil Pública nestes casos.
 
       Conforme o primeiro dispositivo, ao MP na qualidade de instituição permanente e essencial à função jurisdicional, incumbe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (verbis). E suas funções institucionais são explicitadas no segundo (art. 129), que é de extrema clareza ao registrar que cabe-lhe, no que diz respeito às ações coletivas, “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (verbis).
 
       Note-se, pois, que o primeiro fala em direitos indisponíveis, e o segundo, em interesses difusos e coletivos, sem nenhuma referência, portanto, a interesses e direitos individuais disponíveis, ou mesmo homogêneos, estes últimos consagrados no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03). E é alegando a defesa destes mencionados interesses individuais homogêneos que o MP sustenta a sua pretensão de interferir nos ajustes de honorários entre os advogados e seus constituintes.
 
       A ordem jurídica vigente, entretanto, não socorre o pleito ministerial porquanto a sua legitimação processual, em se tratando de interesses individuais, não prescinde da demonstração cabal de que tais, além homogêneos, sejam também indisponíveis. Neste aspecto se destaca o ensinamento do ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Athos Gusmão Carneiro, para quem não há qualquer dúvida de que, no tocante à tutela dos direitos individuais, o MP “somente é legitimado à promoção da ação coletiva no caso de serem tais direitos não apenas titulados por um número plural de pessoas, como ainda de serem provenientes de uma origem comum e de se revestirem do caráter de indisponibilidade” [1].
 
       É de se esclarecer que a lei, quando fala em origem comum, não está se referindo as meras coincidências pessoais entre os envolvidos (como a hipossuficiência, idade ou condição física, p.ex.), nem permite que a mesma seja estabelecida a partir de ilações subjetivas do Parquet. O conceito de origem comum, de acordo com a doutrina e a jurisprudência, associa-se ao de causa de pedir que, na demanda coletiva, com a dedução de um pedido genérico, seja capaz de proporcionar a composição do prejuízo alegadamente suportado pelos interessados. Nas hipóteses, portanto, de tutela coletiva de direitos individuais, as causas de pedir de cada um devem ser, quantitativa e qualitativamente a mesma.
 
       Em outras palavras, há que ser demonstrada a existência de causa de pedir idêntica. Nem mais nem menos. Assim, desde a admissão do procedimento, compete ao julgador analisar se há, pelo menos em tese, uma causa de pedir uniforme que viabilize a pertinência do pedido e possibilite a utilização do instrumento de defesa coletiva. A ação civil pública interposta contra os advogados na comarca de Jales (SP) não cumpre esta exigência já que claramente distintas em suas origens, valendo destacar que nos contratos de honorários mencionados os valores percentuais ajustados com os clientes dos requeridos também são diferentes.
 
       Às lições doutrinárias soma-se a jurisprudência dos tribunais superiores, a exemplo do julgamento proferido no Recurso Especial 787010/RS (DJ de 25.08.2006), relatado pelo ministro Castro Meira, cuja ementa deita uma pá-de-cal na pretensão deduzida pelo MP ao assinalar, num caso envolvendo menor carente, que tanto a Constituição Federal, quanto a legislação infraconstitucional “em relação aos interesses individuais, exige que também sejam indisponíveis e homogêneos” (verbis).
 
       Vale dizer que, suprimido o requisito da homogeneidade, não pode o órgão ministerial agir como representante de pessoa individualizada, faltando-lhe, em conseqüência, legitimidade para propor ação civil pública que vise resguardar direitos individuais, mesmo que se trate de pessoas carentes, idosos, ou portadores de deficiência. No mesmo sentido, o registro feito pelo ministro Luiz Fux, nos Embargos de Declaração no Recurso Especial 586.307 (DJ de 28.03.2005), aduzindo que “na essência, a ação civil pública, que versa sobre interesses individuais homogêneos, não pode ser caracterizada como uma ação gravitante em torno de direitos disponíveis” (verbis).
 
       O mesmo entendimento é subscrito pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 163.231-3/SP (DJ de 29.06.2001), onde foi assentado que “quer se afirme na espécie interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, strictu sensu, ambos estão nitidamente cingidos a uma mesma relação jurídica-base e nascidos de uma mesma origem comum, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque incluem grupos, que conquanto atinjam as pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais, no sentido do alcance da ação civil pública, posto que sua concepção finalística destina-se à proteção do grupo. Não está, como visto, defendendo o Ministério Público subjetivamente o indivíduo como tal, mas sim a pessoa enquanto integrante desse grupo” (verbis).
 
       Na hipótese analisada constata-se que cada um dos substituídos contratou individualmente os serviços advocatícios dos requeridos, ajustando as condições e forma de pagamento destes serviços de modo absolutamente independente e conforme as exigências específicas de cada caso. São, portanto, relações jurídicas absolutamente diversas, em que os honorários profissionais são determinados conforme o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas, o trabalho e o tempo necessários à defesa dos interesses do cliente, o lugar da prestação dos serviços, o proveito advindo ao cliente por conta do trabalho profissional realizado, dentre outras. Enfim, cada caso é um caso.
 
       Verifica-se, portanto, que a relação jurídica-base é diversa para cada um dos substituídos (contrato de honorários), os quais também estão sendo, em verdade, defendidos (sem autorização, frise-se!) de forma individualizada pelo Ministério Público, apenas pelo fato de ostentarem, cada um deles, uma peculiaridade: ou são idosos, ou são hipossuficientes, ou são portadores de deficiência. Daí resulta muito claro que, a prevalência alegada pelo parquet para justificar o ajuizamento da demanda, se dá no campo de uma característica individual, e não coletiva, o que, por si só, já foge ao âmbito de incidência da ação civil pública.
 
       De qualquer maneira, e conforme abalizada doutrina, a homogeneidade não se resume à demonstração da origem comum. É mais que isso: representa a prevalência dos aspectos coletivos sobre os individuais, e isso requer uma uniformidade qualitativa entre os direitos[2]. Segundo o magistério de Ada Pelegrini Grinover, “não há homogeneidade entre situações de fato ou de direito sobre os quais as características pessoais de cada um atuam de modo completamente diferente”[3]. Enfim, conforme sustenta Ricardo Castilho, “a possibilidade de tutela coletiva de direitos individuais depende da homogeneidade desses direitos, o que significa não só terem eles uma origem comum, mas também, e principalmente, terem um caráter social, coletivo (o que implica uma uniformidade qualitativa do pedido), tanto no que se refere à incidência do direito (prevalência de aspectos comuns), como no que toca à efetividade da defesa coletiva em contraposição à defesa individual”[4].
 
       Daí decorrem, outrossim, alguns aspectos que exigem especial atenção, quais sejam, a relevância social da matéria, e a efetividade da defesa coletiva, ambas ligadas, também, à pertinência subjetiva da lide. Relevância social diz respeito ao comprometimento de valores sociais com impacto de massa. Absolutamente fora, pois, da hipótese, onde se discute a validade de cláusula de contrato de honorários, cujo instrumento estabelece com cada cliente uma relação jurídica própria, especial, única, totalmente distinta.
 
       O objetivo do Ministério Público com tais demandas parece ser o de instaurar um verdadeiro controle externo sobre advocacia, ignorando o status constitucional do advogado, a inafastável característica de múnus público de sua função e, não bastasse isto, ainda invadindo a competência exclusiva da Ordem dos Advogados do Brasil, de promover a disciplina da classe. Não há, definitivamente, suporte jurídico a tal pretensão.
 
       Neste ponto, aliás, caberia uma reflexão: estaria o MP legitimado a instaurar inquéritos e ações civis públicas para controlar toda a gama de honorários profissionais ajustados por médicos, dentistas, psicólogos, engenheiros, consultores, etc.? Insere-se este tipo de controle nas suas funções institucionais? Se pode ingerir na esfera privada dos cidadãos desta forma, que dizer da área pública? Nesta linha de raciocínio, logo o MP estará determinando os limites dos salários pagos a juízes, e servidores públicos em geral. É esta a sua função no ordenamento jurídico brasileiro? Se ao Ministério Público for deferido o poder de controlar a remuneração dos advogados, também poderá fazê-lo em relação à magistratura, e com muito maior razão ainda, já que os vencimentos dos juízes são pagos pelo Estado e, portanto, com recursos provenientes dos impostos recolhidos pelos cidadãos. Mas, ainda restaria uma pergunta: E quem controlaria os membros do MP?
 
       Ora, o advogado, ninguém desconhece, juntamente com o Ministério Público e a magistratura, compõe e integra o tripé constitucional. Todo o capítulo IV, do Título IV, da Carta Constitucional, ao definir as funções essenciais à Justiça coloca advocacia e Ministério Público no mesmo nível de igualdade e importância. Permitir que o MP possa imiscuir-se na atividade profissional do advogado a ponto de lhe conferir autoridade para promover um verdadeiro tabelamento — e é disto que se trata aqui! — dos honorários advocatícios, seria, sem sombra de dúvida, comprometer um dos princípios estruturantes do sistema constitucional brasileiro: o do Estado Democrático de Direito, que pressupõe a igualdade e equilíbrio das partes.
 
       Relevância social aqui, portanto, se há, é exatamente no sentido inverso àquele pretendido pelo MP, ou seja, é no sentido de preservar os valores maiores traçados pela Constituição, donde se agiganta aquele que, ligado à independência entre os órgãos e funções essenciais à Justiça, rechaça de modo veemente a intervenção forçada do Ministério Público nas questões atinentes ao exercício da advocacia. Fosse assim, o legislador constituinte teria erigido o Parquet em curador e custos legis universal, com poderes absolutos e competência ilimitada, dispensando, ademais, a autonomia individual com relação aos direitos ditos disponíveis. Ninguém duvida de que esta não foi, absolutamente, a sua intenção.
 
       Assim, e conforme inúmeros julgados do Supremo Tribunal Federal, “o Ministério Público tem legitimação para a ação civil pública em tutela de interesses individuais homogêneos dotados de alto relevo social” (Min. Cezar Peluso. RE-AGr-ED 470.135/MT, em 22.02.2007). Fora destes casos, não lhe assiste legitimidade para propor ação civil pública. Tal legitimação, conforme já esclarecido até aqui, não pode prescindir da demonstração de se tratarem de direitos indisponíveis, homogêneos, e ainda dotados de relevância social que justifique a sua ingerência no âmbito das relações privadas do cidadão. Quanto a este último requisito, não há dúvidas, a defesa por via da ação coletiva está restrita somente aos direitos sociais elencados no artigo 6º da Constituição Federal: educação, moradia, saúde, trabalho, segurança, etc. Em nenhuma destas hipóteses se enquadra a contratação de advogado e ajuste de honorários advocatícios.
 
       Enfim, basta uma análise de cada um dos requisitos destacados, para se chegar à irremovível conclusão de que de direito individual homogêneo e indisponível não se trata na ação civil pública ajuizada pelo MPF junto ao Poder Judiciário de Jales (SP), o que afasta de imediato a autorização legal para que o mesmo se apresente como substituto processual de um pequeno grupo de pessoas (clientes dos advogados requeridos), perfeitamente identificados nos autos, valendo destacar, neste ponto, tratar-se de cidadãos maiores e no pleno exercício de seus direitos civis, e cujos direitos supostamente afetados são inquestionavelmente disponíveis.
 
       Em Santa Catarina, o juízo de Direito da Comarca de Lauro Müller teve oportunidade de apreciar duas ações idênticas, ajuizadas pelo Ministério Público Estadual, em que atuamos na defesa dos advogados requeridos, (Processos 087.07.000958-5 e 087.07.000959-3), acolhendo a preliminar de ilegitimidade de parte, e determinando a extinção dos feitos, com base no art. 267, VI, do CPC. Ambas tiveram o trânsito em julgado certificado em março de 2008. A decisão proferida pela juíza federal da Comarca de Jales em 4 de Julho de 2011, indeferindo a petição inicial, com base no artigo 295, II, do CPC, é mais um precedente que se soma aos anteriores. Espera-se que convença de uma vez por todas o Ministério Público, no sentido de que eventuais reclamações quanto à cobrança de honorários abusivos há que ser submetida à Ordem dos Advogados do Brasil, através da competente representação.
 
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[1] No artigo AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DIREITOS INDIVIDUAIS  HOMOGÊNEOS, LIMITAÇÕES À SUA TUTELA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO”. Publicado na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 12, JUL-AGO/2001, pág. 5).
[2] Ricardo Castilho. In Acesso à Justiça: Tutela coletiva de direitos pelo Ministério Público. Uma nova visão. Ed. Atlas. 2006, pág. 57.
[3] In Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. Revista de Processo, n. 101, p. 21. in Ricardo Castilho, ob. cit.
[4] Ob.cit., p. 58.
 
 
 
(Fonte: Consultor Jurídico – www.conjur.com.br)
 
 

 

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