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Aplicabilidade do artigo 219 do CPC/2015 nos Juizados Especiais

Data: 16/12/2016 16:00

Autor: Thomas Ubirajara Caldas de Arruda é pós-graduando em Direito Civil Contemporâneo pela UFMT

    Inicialmente, é necessário apontar que a novidade trazida pelo artigo 219 da Lei nº 13.105/2015, o novo Código de Processo Civil, referente à contagem dos prazos processuais em dias úteis apenas, reflete um antigo desejo dos advogados ao digno descanso nos feriados e finais de semana, assim como aos juízes, auxiliares e serventuários da justiça. Trata-se de democratização da legislação e do sistema em si, o que em nada obstaculiza a tramitação dos feitos, especialmente porque o código nasceu com os olhos voltados para o espirito de cooperativismo processual, decorrente da ideia de que todas as partes que integram o processo devem colaborar para a obtenção de uma decisão justa, célere e efetiva.

    O novel diploma deixou de enveredar por vales escuros na imaginação dos seus entusiastas para se tornar realidade factível, com a publicação e ulterior entrada em vigor, em março de 2016. Dizem por aí, que o código é um divisor de águas, por ser o primeiro desenvolvido em regime democrático no país, o que não quer dizer que seja levemente digestivo. Longe disso. Hoje percebemos que digerir a invocação de algumas interpretações do CPC/2015 poderá se tornar uma tarefa aflitiva, angustiante, pelo menos nos primeiros anos de vigência. A preocupação que tanto pulsava na cabeça dos operadores do direito, revela agora não ser somente o medo do novo, mas sim fruto de um sem número de razões, sendo que uma delas concentra-se na (in)aplicabilidade da nova legislação processual ao microssistema dos juizados especiais cíveis. Afinal, a contagem dos prazos nos JEC’s será realizada em dias úteis ou continuará fluindo em dias contínuos?

    Muito se discutiu sobre o assunto, e, mesmo dentre os mais renomados estudiosos da comunidade jurídica, inclusive aqueles que acompanharam a tramitação do novo código e participaram da elaboração de seu texto,  despontaram divergências. Não é o que deveria acontecer, pois no que se refere à compatibilidade do art. 219 com o procedimento especial da Lei nº 9.099/95, a questão é tecnicamente simples, arredia a interpretações mirabolantes.

    Há quem diga que a aplicação subsidiária do CPC somente ocorrerá na fase de cumprimento de sentença e “no que couber”, com fundamento no artigo 52 da lei que rege o procedimento especial  . Para tanto, afirmam alguns juristas, que assim quis o legislador, caso contrário reservaria um dispositivo que manifestasse expressamente a vontade de que fossem aplicadas as regras do procedimento comum.

    Com efeito, analisando o texto do artigo 178 do Código de Processo Civil de 1973  , é possível observar que a norma anterior previa claramente que o prazo (legal ou judicial) era contínuo e não se interrompia nos feriados. Nos juizados especiais, mencionada regra geral sempre foi aplicada subsidiariamente, sem maiores digressões, justamente por ausência de norma específica na Lei nº 9.099/95. Veja bem, nunca houve disposição expressa a respeito, mas a aplicação da regra geral de contagem dos prazos do CPC sempre vestiu perfeitamente bem, como um terno italiano, no sistema especial dos juizados. Pelo menos até a vigência do “famigerado violentador da celeridade”, persona non grata pelos ferrenhos defensores do microssistema: o Novo Código de Processo Civil.

    Primeiro, é preciso empreender uma análise partindo da premissa de que não há nenhum dispositivo, definitivamente nada, na Lei 9.099/95, que regulamente a forma de contagem dos prazos processuais perante os juizados especiais. Da leitura, ponta a ponta, da norma especial, não é possível saber se no cômputo dos prazos se exclui o dia do começo e inclui o dia do fim ou vice-versa, muito menos se o transcurso do prazo será contínuo ou de modo diverso.

    Assim, nada mais lógico do que a prevalência da regra geral do artigo 219 do novo diploma, até porque a Lei 9.099/95 fez questão de acompanhar a realidade do Código de 1973 à época, e se agora a realidade se transformou, se os anseios em busca da efetiva prestação jurisdicional são outros, a obviedade não escapa da interpretação no sentido de que o procedimento especial deve se ater à regra da contagem estabelecida na nova codificação processual. São novas concepções e os olhos dos intérpretes devem mirar o futuro, como conclamou os professores Lenio Streck e Dierle Nunes: devemos olhar o novo com os olhos do novo!

    O Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), durante encontro realizado em maio de 2015, em Vitória/ES, se pronunciou favoravelmente à aplicabilidade do artigo 219 nos juizados especiais, como se vê do texto dos enunciados aprovados :

    “Enunciado nº 415. (arts. 212 e 219; Lei 9.099/1995, Lei 10.259/2001, Lei 12.153/2009) Os prazos processuais no sistema dos Juizados Especiais são contados em dias úteis (Grupo: Impacto nos Juizados e nos procedimentos especiais da legislação extravagante).

    Enunciado nº 416. (art. 219) A contagem do prazo processual em dias úteis prevista no art. 219 aplica-se aos Juizados Especiais Cíveis, Federais e da Fazenda Pública. (Grupo: Impacto do novo CPC e os processos da Fazenda Pública).”

    Em entendimento convergente, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), durante encontro que reuniu cerca de 500 magistrados em agosto de 2015, aprovou o enunciado nº 45: “A contagem dos prazos em dias úteis (art. 2019 do CPC/2015) aplica-se ao sistema de juizados especiais”.

    Tudo ia caminhando bem, na direção de uma compreensão alinhada e uníssona, e o que se esperava era que a ideia do novo código fosse encampada pelo Judiciário em geral. No entanto, poucos dias antes da vigência do NCPC, o Fórum Nacional de Juizados Especiais (FONAJE) divulgou a “Nota Técnica n. 01/2016”  afirmando que não se aplicará o artigo 219 no JEC, subsistindo a contagem dos prazos em dias corridos, sob o fundamento de que a citada norma não se enquadraria ao princípio da celeridade que alberga o rito sumaríssimo. De acordo com a Nota Técnica, “(...) com o advento do Novo Código de Processo Civil (CPC de 2015), por força do artigo 219, a justiça cível dita comum passa a conviver com a contagem de prazos legais e judiciais em dias úteis, em inexplicável distanciamento e indisfarçável subversão ao princípio constitucional da razoável duração do processo”.

    Ao revés, demonstrando personalidade, a Turma de Uniformização de Jurisprudência das Turmas Recursais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios deliberou a respeito e decidiu que o dispositivo do NCPC que prevê a contagem de prazos em dias úteis alcançará também os juizados especiais. O entendimento restou consolidado no Enunciado nº 04: “Nos Juizados Especiais Cíveis e de Fazenda Pública, na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis, nos termos do art. 219, do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15)” .

    São questionamentos que só agora vieram à tona, das profundezas de um mar sem fim, em razão da cega crença de que a culpa da morosidade processual é dos prazos. Assertivas no sentido de que a aplicação do modelo de contagem de prazos do CPC irá desacelerar o andamento dos feitos na verdade distorcem a finalidade da lei.  Por outro lado, quando se fala em elementos criados para simplificar e agilizar o trâmite processual como, por exemplo, a possibilidade de decisão de improcedência liminar, os paladinos rapidamente manifestam-se a favor.

    É perfeitamente compreensível o receio de que a utilização desregrada da legislação ordinária nos juizados comprometa o sustentáculo do rito sumaríssimo, consubstanciado na oralidade, informalidade, celeridade, simplicidade e economia processual. Todavia, parece mais aquela velha canção do rádio de Belchior, em que um antigo compositor baiano dizia: “tudo é divino, tudo é maravilhoso”  .

    No dia a dia da prática forense, a verdade é uma só. Nada é divino, nada é maravilhoso. Mesmo nos juizados especiais - e não só ortograficamente falando - morosidade rima com realidade. Esta odiosa combinação deriva de inúmeros problemas estruturais do próprio Poder Judiciário, evidenciando dificuldades operacionais, materiais, administrativas, organizacionais e de recursos humanos.

    Como bem destacou o professor Rogério Licastro Torres de Mello ,

     "De fato, não é razoável ponderar que contar apenas dias úteis para fins de cumprimento de prazos no âmbito da Lei 9.099/95 tornaria o rito desta moroso, ou ainda mais moroso (pragmaticamente falando). É de domínio público que as ações judiciais que tramitam nos juizados especiais cíveis Brasil afora exigem meses e anos para que atinjam sua conclusão, meses e anos estes que não deixarão de ser, com o perdão pela repetição, meses e anos porque alguns poucos dias não úteis foram excluídos do cômputo de prazos!"

    Na mesma linha, o professor Daniel Amorim Assumpção Neves, ao comentar sobre a contagem do prazo, afirma que culpar os prazos pela demora no processo além do tempo razoável é pura inocência. Em breves linhas, o doutrinador explica que “a culpa na realidade é do tempo morto, ou seja, o tempo de espera entre os atos processuais, principal culpado pela morosidade procedimental”  .

    Com a mesma voz, não me parece acertada a interpretação de que a contagem dos prazos em dias úteis atenta contra os princípios norteadores justiça especializada, mesmo porque o próprio CPC/2015 também prestigia, expressamente, a razoável duração do processo como uma das bases fundamentais do sistema processual, quando prevê em seu artigo 4º que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”. Se o artigo 219 é compatível com o procedimento ordinário, porque não o seria em relação aos juizados especiais, considerando que ambos possuem como fundamento chave o supracitado princípio?

    Como dito prefacialmente, ao dispor sobre a contagem dos prazos em dias úteis, o objetivo do código foi a concretização de direito essencial do advogado, elemento indispensável à administração da justiça, de forma que o processo fosse equalizado de maneira justa, tudo pensando na eficiência do trabalho realizado em favor do jurisdicionado. Se na justiça comum funcionará assim, qual o motivo para que não funcione na justiça especializada? Será que no âmbito dos juizados o advogado deverá ser tratado de forma indigna, obrigado a trabalhar nos feriados e finais de semana, tudo em nome de uma justificativa equivocadamente (e seletivamente) embasada? Esta é uma questão a ser considerada.

    E mais, a aplicação de formas diferentes de contagem de prazos (no procedimento comum e nos juizados) ocasionará uma situação bem peculiar, pra não dizer uma tremenda confusão. Suponhamos que os prazos sejam contados em dias corridos até o julgamento do recurso inominado pela turma recursal e a parte queira interpor recurso extraordinário contra o acórdão proferido pelo colegiado, como será feita a contagem do prazo nesse caso, em dias úteis ou corridos?

    Destaca-se que a previsão do recurso excepcional está contida na Constituição Federal, sendo que os seus procedimentos foram regulados pela norma processual ordinária (CPC), especificando os requisitos de admissibilidade e os prazos. Ora, se a parte irá se utilizar de um recurso, no prazo previsto pelo CPC, ou seja, 15 dias, o que justificaria a contagem de maneira diferente daquela disposta na lei ordinária (em dias úteis)? Ou será que também reduzirão o prazo do recurso extraordinário para 10 dias, sob fundamento de que um recurso com prazo superior atenta contra os princípios informadores do microssistema? De todo modo, mesmo se for observado o artigo 219 na interposição do apelo extraordinário, se revela no mínimo curioso o fato de a metade dos prazos serem contabilizados continuamente (até o julgamento do recurso inominado) e a outra metade em dias úteis (após a decisão da turma recursal, p. ex: RE, agravo em RE e agravo regimental no STF).

    Agora vejamos a situação inversa. Caso o prazo do recurso extraordinário interposto em face de decisão de ultima instância, proferido pela turma recursal, seja contado em dias corridos, na contramão do CPC, estaremos diante de algo incomum no Supremo Tribunal Federal: atos processuais com contagem de prazos em dias corridos, nos recursos extraordinários interpostos no âmbito dos juizados especiais cíveis e outros em dias úteis, nos casos de recursos oriundos da justiça comum. Atenção, a natureza dos recursos será a mesma, a matéria será a mesma (cível), o prazo será o mesmo, mas a forma da contagem não será a mesma? Seria algo inimaginável até então.

    Pois bem, se a vontade do legislador foi implantar um sistema jurídico coeso, coerente e principalmente íntegro, destoa da lógica a não aplicação do CPC ao sistema dos juizados, especialmente em relação a regras importantes, atinentes à forma de contagem dos prazos e fundamentação das decisões. A interpretação deve ser feita com cautela e parcimônia, sem descuidar do objetivo de mudança de mentalidade exteriorizado no código concernente a vários paradigmas que haviam de ser superados há muito tempo, priorizando a integração de todo o sistema processual cível.

    De qualquer forma, o diálogo entre as diversas classes é imprescindível para que se alcance a solução mais adequada, antes que os tribunais interpretem a norma concentrados em pura vaidade intelectual. Dentro da ordem de ideias aqui expostas, sobrelevo a fala da sempre brilhante, professora Teresa Arruda Alvim Wambier: “Não há, na natureza, uma coisa julgada ou um prequestionamento. Nós é que dizemos o que são esses dois fenômenos, traçando-lhes o perfil. Portanto, devemos dialogar, sempre com o objetivo de chegar a uma solução, e não com a finalidade de ‘ganhar’ a discussão” .
 

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