O direito de propriedade imóvel em Mato Grosso, notadamente, nas regiões mato-grossenses de Cuiabá, Chapada dos Guimarães, Diamantino, Cáceres, Vila Bela da Santíssima Trindade, Poconé, Santo Antonio do Leverger, Nossa Senhora do Livramento, Várzea Grande, etc, em que foram concedidas cartas de sesmarias e legitimadas posses, sofre insegurança jurídica.
Isso porque, mesmo devidamente registrado no serviço registral de imóveis, a documentação do imóvel pode esconder surpresas, sobretudo, em se tratando de imóvel com registro cartorário antigo, com transcrições abertas nas décadas de 40, 50, 60, etc, que fazem alusão às cartas de sesmarias, legitimação da posse, sentenças judiciais.
Essas surpresas, não rara às vezes, aparecem quando há necessidade de comprovar a origem do imóvel, pois, a cadeia de domínio pode não chegar ao destaque regular.
Problemas que podem ser resolvidos através de diversos institutos jurídicos, inclusive, com a regularização fundiária junto ao Estado ou União, iniciando uma nova realidade dominial sobre o imóvel, com segurança jurídica.
Porém, existem situações em que o proprietário pode não ter a oportunidade de manejar este instituto para regularizar seu imóvel, nesse sentido citamos como exemplo: se um imóvel estiver sendo desapropriado por um ente público e for identificado que a documentação não chega à origem com o regular destaque do Estado ou União, sua indenização referente ao valor da terra pode estar comprometida e a referida matrícula/transcrição anulada.
Igualmente, se houver uma discussão jurídica sobre o imóvel entre particulares e a perícia identificar inconsistência na corrente dominial, de modo que não reste comprovado o destaque originário, pode de igual forma ocorrer à nulidade da matrícula ou transcrição.
Isso ocorre porque o Sistema Registral Comum é passível de questionamento devido à presunção relativa da validade dos atos, conforme ensinamento do professor Décio Antônio Erpen: “A presunção relativa (juris tantum), emanada do Sistema Registral Comum, estabelece que o registro, até prova em contrário, atribui eficácia jurídica perante terceiros (...)”.
Para melhor compreender essa situação é necessário uma viagem no tempo, buscando o conhecimento histórico da malha fundiária brasileira.
Para o professor Rubem Ribeiro de Carvalho, “A compreensão do atual estado do direito à propriedade imóvel no Brasil deve partir do conhecimento histórico sobre como se deu a sua constituição no plano legal desde o período colonial até o atual período republicano, pois, como se sabe, a legislação regente sobre a matéria resulta de contextos que ligam no tempo modelos econômicos, políticas públicas e práticas culturais, entre outras singularidades próprias das relações sociais.”
Nessa visão, temos que até 1822, a forma de “aquisição” de terras no Brasil colônia era através do instituto das sesmarias. Entre 1822 a 1850, houve o período das posses livres.
Em 1850, foi publicada a primeira Lei de Terras do Brasil, a Lei nº 601, que representou um marco na história agrária brasileira, disciplinando o regime de terras no Brasil Império, de modo que a aquisição deveria ocorrer somente por compra, exceto, as terras situadas em região de fronteira em uma zona de 10 léguas, as quais poderiam ser concedidas gratuitamente.
Além de colocar as terras brasileiras no comércio, referida Lei iniciou um período que permitiu a revalidação das sesmarias caídas em comisso e legitimação das posses, e ainda norteou as diretrizes usadas pelo Estado de Mato Grosso, quando da criação da sua primeira Lei de Terras, em 1892, no início da república, até a Lei 3922 de 1977.
Assim, “a origem da propriedade particular no Brasil ora advém das doações de sesmarias, ora é proveniente de ocupações primárias. Ambas, para se transformarem em domínio pleno, deveriam passar pelo crivo da “revalidação” ou, quanto às “posses de fato”, da “legitimação”, procedimentos previstos, respectivamente, nos arts. 4º e 5º da lei 601 de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras)”. (STJ)
Analisando a evolução das leis de transmissão da propriedade imóvel no Brasil desde o século XIX, quando ainda eram aplicadas as Ordenações Filipinas, que repercutiram no direito brasileiro até 1917, com a entrada em vigor do Código Civil Brasileiro de 1916, constata-se que a propriedade imóvel era transmitida pela tradição.
Em 1864, 22 anos da abolição da escravatura, surge a Lei nº 1237 com o objetivo de se prestar maior garantia comercial por meio da hipoteca através de um sistema jurídico de transcrição do título da propriedade imóvel, regulamentado pelo Decreto 3453/1865.
Defendida pelo Conselheiro Nabuco de Araújo, deu um novo rumo à constituição de hipoteca, tentando solucionar problemas da Lei Orçamentária n. 317/1843, instituindo a transcrição de todos os títulos para transmissão dos imóveis por atos inter vivos em registro público e ao dispor que a transferência do imóvel só se operava a respeito de terceiros, com a transcrição e a partir de sua data.
Entretanto, não conferiu valor de prova do domínio à transcrição, uma vez que a lei das hipotecas trouxe a certeza da garantia do crédito pela hipoteca, sem, concorrer para a certeza do domínio, pois atestava tão somente a alienação, de modo que a Lei das hipotecas, precursora do registro de imóveis, antes de garantir a segurança da propriedade, buscou a segurança comercial.
A vedação da condição de prova do domínio à transcrição, certamente ocorreu devido às incertezas quanto à propriedade rural e aos conflitos existentes sobre a relação fundiária na época. Como era incerto o domínio e as dimensões das propriedades, o parlamento, naquele momento histórico, decidiu não reconhecer que o registro da transcrição da escritura de compra e venda, por certo lavrada sem o conhecimento da cadeia dominial, constituir-se-ia prova cabal do domínio da terra, (FREITAS, 2003. 1867 p. CCIII)
Certo é que a Lei 1237 de 1864, regulada pelo Decreto n. 3453/1865, deixou várias lacunas, como não atender a princípios, não prever a transcrição das transmissões causa mortis e de atos judiciais, restando prejudicada a formação da cadeia de domínio nos livros de registros, e que, em consequência disto, surgiu em 1890 o Registro Torrens (Decreto 451-B de 1890 e 955-A de 1890) para garantir a segurança do crédito e do comércio, entretanto, ao exigir um procedimento longo e caro, não caiu nas graças da população.
Em 1924, foi sancionada a Lei 4.827, que reorganiza os registros públicos instituídos pelo Código Civil; em 1928, o Decreto 18.542, aprova o regulamento para execução dos serviços concernentes nos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil, aprimorou o sistema com a previsão do principio da continuidade, e, em 1939 o Decreto 4.857, dispôs sobre a execução dos serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil, que segundo Philadelpho Azevedo, o legislador tinha perdido a oportunidade de fixar linhas precisas do instituto de registro.
Após, várias leis sobre o tema, inclusive com o Decreto-Lei nº 1000 de 1.969, que não chegou a entrar em vigor, foi promulgada a Lei 6015/73, que revogou a Lei 4.827/1924, Decreto 4.857/1939, dentre outras, e instituiu a matrícula, sendo uma primeira medida para cadastro da propriedade. Na matrícula constariam todas as informações sobre o imóvel, características e confrontações, devidamente individualizadas.
Segundo Júlia Rosseti Picinin Arruda Vieira, “Ao instituir a matrícula, a Lei de Registros Públicos, aproximou o sistema brasileiro do modelo cadastral alemão, por outro lado afastou-o desse regime, ao admitir expressamente e sem ressalvas que o registro baseado em título nulo ou anulável seja cancelado diante de determinação judicial. “
Na falta ou insuficiência de dados que impedisse a identificação do bem, o oficial negava-se a realizar o registro, devendo assim, o requerente buscar o meio judicial. (art. 228)
Segundo Valmir Pontes, “apesar de ser correto o entendimento que a criação da matrícula visou estabelecer no Brasil, em um futuro distante, um sistema similar ao alemão, continua sendo possível retificar ou anular os registros.”, ou seja, a matrícula aproximou o sistema brasileiro do modelo cadastral alemão, por outro o afastou desse regime, ao admitir expressamente e sem ressalvas que o registro baseado em título nulo ou anulável seja cancelado.
Neste prisma, sendo precário o título e a última transcrição do imóvel apresentado, de forma que não fosse possível identificar o imóvel, o oficial negava o registro.
Entretanto, como dito alhures, muitos registros foram permitidos pelo oficial sem as cautelas necessárias, de forma que no Estado de Mato Grosso cada imóvel requer estudo especifico para verificar a legitimidade da cadeia dominial.
Nesta seara, visando solucionar a situação fundiária histórica no Estado de Mato Grosso, a Assembleia Legislativa do Estado votou recentemente o projeto de Lei nº 1425/2023, que dispõe sobre o reconhecimento e a convalidação, com força de título de domínio, das posses inseridas nas matrículas imobiliárias com descrições precárias e/ou desfiguradas, nos registros imobiliários de imóveis rurais, cuja origem não seja em títulos de alienação ou concessão expedidos pelo poder público, devidamente registrados/averbados nos Serviços Registrais de Imóveis do Estado de Mato Grosso, com exceções disposta no art. 2º.
O projeto de lei apresentado em Mato Grosso tem as mesmas características da Lei nº 3.525, do Estado do Tocantins, publicado no Diário Oficial em 08 de agosto de 2019, contudo, essa apresentada pelo executivo e aquela pelo legislativo. No caso de Mato Grosso, mesmo apresentado pelo legislativo foi considerada constitucional pela CCJ da AL/MT. Ultrapassando, assim, a primeira barreira de controle de constitucionalidade mesmo prevendo o destaque/reconhecimento de terras públicas de jurisdição do Estado de Mato Grosso na modalidade gratuita.
Assim, como no Estado de Tocantins, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso tem como objetivo a segurança jurídica e a reparação histórica do Estado com ocupantes de áreas mais antigas do estado, e, consequentemente, proporcionar o desenvolvimento socioeconômico e avanço do IDH.
Contudo, esse enfrentamento mostrou-se ingrato, pois, repita-se, vários registros foram realizados de forma irregular, sem o devido destaque do Estado ou do processo de revalidação ou legitimação exigido pela Lei do Império nº 601/1850, e seu Decreto regulamentador nº 1318/1854, e demais leis do Estado de Mato Grosso que autorizaram a prática a partir da Constituição republicana de 1891, que transferiu as terras devolutas aos estados membros.
Na verdade, podemos citar várias irregularidades, dentre as quais: transcrições abertas com força em registro do vigário, sesmarias concedidas pelo governador e capitão-general, mas não confirmadas pelo rei ou conselho ultramarino ou não revalidadas, e, mais recentemente, títulos falsos, principalmente na época em que o DTC permaneceu fechado, cártulas originais desviadas, preenchidas e levadas a registro, ultimações sem observações legais, certidões de inteiro teor (expedidas pelo INTERMAT) registradas em duplicidade com outra ou com seu título originário, títulos expedidos sem respeito ao limite constitucional, procurações falsas ou procurações confeccionadas a diversos agentes para burlar o limite constitucional, etc.
Desse modo, trata-se de projeto ousado, pois, dentre as matérias do direito civil o direito de propriedade imóvel e sua transmissão é uma das mais complexas de legislar, pois, envolve uma série de particularidades, dentre as quais, o sistema de registro imobiliário, e, essencialmente a segurança que deve garantir.
Destarte, esse pequeno recorte histórico demonstra a necessidade e importância da regularização fundiária para o desenvolvimento social e econômico do Estado de Mato Grosso, demonstra, igualmente, que no sistema do registro de imóveis ocorreram, no decorrer da história da propriedade privada de imóveis no Brasil, várias alterações, com idas e vindas, de modo que há muito a se fazer no plano legal para que consolide o sistema de registro de imóveis e garanta a segurança jurídica ao direito de propriedade imóvel e sua transmissão.
* Luiz Carlos Fanaia de Almeida é Advogado do Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT), membro da Comissão de Assuntos Fundiários da OAB/MT, especialista em Regularização Fundiária pela UFMT, Direito Agrário, Direito Ambiental, pós graduado em Gestão em Cidades e especializando em Direito Constitucional.