A autonomia e participação do credor na recuperação judicial decorrem da própria evolução dos procedimentos de insolvência no Brasil. Considerando que no Decreto-Lei nº 7.661/45 o credor quase não tinha voz, o Estado-juiz concedia o favor legal ao devedor sem dar oportunidade ao credor de manifestar seus interesses.
Aquele famigerado cenário promovido pelo Decreto-Lei nº 7.661/45 não previa a manifestação do credor porque aquela norma era totalmente dissociada do propósito de reestruturação da sociedade empresária em crise. Muito embora existisse um procedimento chamado de concordata preventiva, que tinha o propósito de evitar a falência, o fato é que não havia participação direta dos credores e notava-se na interpretação geral da antiga Lei, que a recuperação da empresa e a manutenção de sua função social não eram a sua finalidade central.
A Lei nº 11.101/2005 alterou significativamente esse cenário, passando o credor a ter voz ativa no processo de recuperação judicial, extrajudicial e de falência de empresas. A participação e autonomia foram fortalecidas com a reforma perpetrada pela Lei nº 14.112 de 2020.
A regra agora é que exista a participação ativa do credor, não na busca de seus interesses particulares de forma exclusiva e preponderante, mas sim, em uma participação em prol da coletividade, tanto a coletividade de credores, como a coletividade social. Este último, é constituído por um grupo mais abrangente de pessoas, onde se encontram trabalhadores, fornecedores, consumidores e o fisco Municipal, Estadual e Federal.
Assim, se o colégio de credores, por meio de sua ativa participação, constatar a viabilidade da empresa e aprovar o plano de recuperação judicial ou, caso contrário, se os credores não visualizarem viabilidade e rejeitarem o plano recuperatório, em ambas as situações os credores estarão exercendo o seu papel. Em qualquer dos casos, o maior beneficiário é a sociedade e a economia nacional.
A participação dos credores nos processos de recuperação judicial, extrajudicial e de falência, é tão importante para o alcance dos objetivos da Lei, que a doutrina enxergou na interpretação da norma que a atuação dos credores constitui um dos princípios basilares do sistema de insolvência empresarial, denominado pelos estudiosos de princípio da participação ativa dos credores. Vejamos o que o Professor Daniel Carnio Costa ensina sobre este princípio:
“Diferentemente do que ocorria no regime do Decreto-Lei 7.661/1945, em que a concordata era imposta aos credores, a Lei 11.101/2005 prevê participação ativa dos credores na recuperação, judicial ou extrajudicial, e na falência. Isso porque são eles que sofrem os efeitos da novação das condições originalmente contratadas com o devedor, devendo, portanto, lhes ser garantido o direito de participação em processos decisórios.
[...]
Isso leva à conclusão de que, em um processo de recuperação judicial, é muito importante que os credores busquem a defesa de seus interesses, mas que essa busca não os impeça de visualizar que o bem comum é superior ao bem particular, uma vez que, para a sociedade, é mais importante a reestruturação da empresa, com a manutenção dos empregos, da cadeia produtiva e pagamento de impostos, do que o pagamento de um credor específico ”.
O objetivo da Lei nº 11.101/2005 é promover a reestruturação econômico-financeira da sociedade empresária em crise por meio de uma negociação estruturada sob a supervisão do Poder Judiciário, do Ministério Público e, é claro, dos credores, mediante sua autonomia e o interesse de agir processual, que neste caso, será sempre a existência de um crédito ou um bem a ser restituído.
A finalidade da Lei deve ser alcançada pela harmonia dos vários interesses envolvidos, principalmente os da coletividade de credores. O propósito da recuperação judicial, que está preceituado no artigo 47 da LREF, só será alcançado pela consonância dos interesses do devedor, da coletividade de credores e de todos os agentes que são afetados pela crise da empresa. Dessa forma, a meta final da Lei nº 11.101/2005 é impedir que os maléficos e desastrosos efeitos econômicos e sociais da crise empresarial assolem o progresso nacional, recuperando ou encerrando as atividades e liquidando o patrimônio da Massa Falida.
A lei foi aparelhada para que todos os interesses envolvidos e impactados pela crise da empresa pudessem convergir para a manutenção da atividade produtiva capaz de gerar e circular riquezas, sob o ponto de vista de que é racional esperar que todos os envolvidos irão buscar proteger os seus interesses individualmente. Portanto, a convergência de interesse na recuperação judicial não é espontânea.
As discussões sobre os limites da autonomia do credor na recuperação judicial iniciaram com a suscitação de que o credor não deveria manifestar seu voto na aprovação ou reprovação do plano de soerguimento privilegiando seus interesses individuais às custas dos interesses de outros credores, ou às custas da coletividade de credores, ou, às custas do encerramento da atividade empresarial.
As primeiras discussões apontavam para o fato de que seria incompatível no microssistema da recuperação judicial privilegiar um voto do credor que reprovasse o plano quando havia proposta de pagamento integral do débito ou quando a proposta de pagamento era mais vantajosa do que um eventual pagamento na liquidação.
A manifestação dos credores individualizados que atentem contra os interesses de outros credores e/ou contra a coletividade de credores, atentaria contra a comunhão de interesses que deve ser prestigiada prioritariamente na recuperação judicial. Os credores não poderão ter a tutela de seus interesses protegidos às custas de prejuízos de outros credores ou às custas de prejuízos da coletividade de credores, ou ainda, às custas da quebra da empresa, sob pena de sua atuação ser interpretada como abusiva.
Hoje, as discussões acerca da autonomia do credor são ainda mais complexas. As novas discussões envolvem uma hermenêutica jurídica capaz de subsidiar a aplicabilidade da lei a partir de parâmetros além da literalidade da norma. Recentemente, foi superada uma clássica e grande discussão sobre o limite da autonomia participativa dos credores, acerca das garantias reais e fidejussórias, sendo pacificado pelo STJ o entendimento de que a substituição ou a supressão dessas garantias deve ter a anuência expressa do credor titular da salvaguarda (REsp 1.794.209).
Ademais, a própria alteração do procedimento de recuperação judicial promovida pela Lei nº 14.112/2020 suscita novas discussões acerca da autonomia do credor ao preceituar que o Estado-juiz pode autorizar a constituição de garantia subordinada sem anuência do credor com garantia originária (Art. 69 C) e também o Juízo recuperacional pode autorizar a consolidação substancial de ativos independentemente da realização de assembleia de credores (Art. 69 J).
As discussões acerca da autonomia do credor na recuperação judicial sempre envolverão os objetivos e as finalidades da Lei nº 11.101/20005. Somente a perseguição pelo progresso nacional, dentro de um sistema democrático e constitucional de desenvolvimento econômico, a partir do desenvolvimento da atividade empresarial seria motivo relevante para subsidiar uma rediscussão acerca da autonomia do credor sem afrontar a proteção do crédito e sem promover o desestímulo ao investimento no Brasil.
*Breno Augusto Pinto de Miranda é advogado, administrador judicial, presidente da Comissão de Estudos da Lei de Falência e Recuperação de Empresa da OAB-MT e diretor do Instituto Brasileiro de Insolvência (Ibajud).
*Max Ferreira Mendes é advogado, membro da Comissão de Estudos da Lei de Falência e Recuperação de Empresa da OAB-MT e presidente da Comissão de Defesa dos Honorários Advocatícios da OAB-MT.
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