O Estado Democrático de Direito se assenta sobre dois pilares: regime representativo da vontade popular e sistema de garantias jurídicas contra a intervenção abusiva do Estado na esfera individual. Neste, ocupa lugar de destaque o conjunto de garantias do investigado, do acusado, e do condenado. Isso não é singularidade nossa.
O titular desse direito individual é o ser humano, seja ele alto, ou baixo honesto ou desonesto cumpridor da lei ou criminoso. Não se discute que o combate à criminalidade cabe ao Poder Executivo, por intermédio da polícia, e do Ministério Público, titular que é da ação penal. Ocorre, porém, que esse combate fatalmente há de colidir com os direitos individuais.
Nesse sentido, o artigo 129, VII da Carta Republicana conferiu ao Ministério Público o exercício do Controle Externo da Atividade Policial, objetivando que seja exercida fiscalização sobre as atividades da polícia em sua missão de apurar as infrações penais, para o inquérito seja revestido, repita-se, revestido, de elementos fortes a dar suporte a futura ação penal e ao próprio processo penal, bem como que a atividade policial trilhe pela total legalidade.
Dito isto, o país assistiu cenas lamentáveis, onde Integrantes da Polícia Militar do Estado de Goiás agrediram o advogado Orcélio Ferreira Silvério Júnior enquanto ele estava algemado e imobilizado. As imagens da violência viralizaram nas redes sociais nesta última quarta-feira (21/7).
O vídeo mostra o profissional levando uma série de tapas e socos e sendo arrastado pelo chão após tentar intervir a favor de um flanelinha que estava sendo abordado também com violência pelos policiais militares. As imagens foram gravadas por populares que estavam na via pública em que o advogado foi agredido.
A truculência e os despreparos demonstrados nos vídeos chocam, basicamente, pelo abuso nítido na conduta dos policiais, que agiram de forma desmedida, empregando força além da necessária para o caso, em total descompasso com as garantias constitucionais, legais.
Não obstante, a título de ilustração, com o intuito de demonstrar o despreparo e insensatez da policia, fatos dessa natureza já foi alvo de investigação no Estado, quando absurdamente quatro policiais militares agrediram o então Juiz de Direito Renan Carlos Leão Pereira em dezembro de 2013, cujo desdobramento encontra-se nas barras da Justiça.
Com efeito, é inadmissível que um órgão estatal, cumpra sua altaneira missão violando a norma legal. Nada justifica e tampouco autoriza que alguns de seus integrantes, independente do móvel de que imbuídos, operem à margem da lei no exercício de suas funções. Com tal não se pode compadecer, exigindo-se, pois, ampla apuração e severa punição.
Sem embargo, não se trata de ‘desconfianças’ quanto aos rumos que se pode dar às investigações, mas de legitimidade e interesse mesmo da OAB nacional em acompanhá-las, até porque, dentre suas funções institucionais está a de agir em defesa da Constituição, da Ordem Jurídica do Estado Democrático de direito, e de pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento das instituições [Lei n. 8.906/94, art. 44, I], especialmente diante desses lastimáveis fatos, enormemente repudiado por todos.
Não obstante, a Ordem dos Advogados do Brasil, tem sim legítimo interesse em acompanhar as investigações, tanto que o Presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz, também condenou as agressões. "Imagens enojantes de agressão (covardia) policial contra advogado em Goiás. Milicianos que inclusive sabiam que estavam sendo filmados”.
Verdadeiramente, imaginem o que fazem a polícia em geral sem testemunhas e longe dos olhos da sociedade, ou de quem quer que seja, já que dificilmente, com raras exceções suas Corregedorias são omissas nesse sentido, ou porque não dizer corporativistas quanto às futuras e devidas punições, pois os desvios de comportamento de uns repercutem com intensidade, maculando a imagem de todos, sobrevém grande quantidade de críticas na mídia, nas redes sociais, última trincheira do cidadão contra os abusos do Estado ou dos seus semelhantes.
A primeira pergunta que nos vem à mente é: O que fazem as Corregedorias para evitar que cheguem a tais incidentes? Afinal, na maioria das vezes, os casos noticiados na mídia não ocorrem isoladamente, ao contrário, é fruto da tolerância daqueles que têm o dever de controlá-los. Em outras palavras, a ausência de controle estimula a prática de infrações, o que sem dúvida é lamentável.
Ora, desde o uso abusivo e espetacular de algemas, dos grampos ilegais, das divulgações das escutas telefônicas em diversos meios de comunicações, das prisões midiáticas e humilhações, são condutas agressivas não apenas aos direitos fundamentais das pessoas, mas à própria essência do Estado de Direito, traduzindo-se no uso de prerrogativas próprias de um Estado de exceção.
A audácia incontrolável de ditas ‘autoridades, que deveriam proteger os direitos e as garantias individuais, está transformando os espaços da intimidade do cidadão em centrais reprodutoras da insegurança e na imagem de imensos e infinitos aquários de peixes. Digo isto porque, órgãos do próprio Estado, responsável por garantir o direito de todos estão provocando e disseminando a epidemia do medo, que se irradia para muito além do espaço das investigações criminais, alcançando os cenários da sociedade em geral, a pretexto de punir alguns possíveis culpados, mas invadindo a privacidade de milhões de inocentes.
Assim, precisamos estar em permanente estado de vigilância, para ao um só tempo defender a sociedade daqueles que teimam em fazer do público o privado, que insistem em macular a vida de cidadãos de bem, mantendo-se firme na vigilância do Estado Democrático de Direito, da ampla defesa e o devido processo legal, princípios basilares, porque contra esse paradoxo intolerável, todos os cidadãos, independente de origem profissional ou social, têm o dever de cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis do país, em defesa dos valores essenciais da vida coletiva e da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República.
Enfim, quando um cidadão de bem é agredido, todos nós somos!
*José Ricardo Costa Marques Corbelino é advogado e atual membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).