A nova Lei de Abuso de Autoridade - Lei 13.869, de 05 de setembro de 2019, entrou em vigor em 03 de janeiro de 2020. Na oportunidade, houve grande trauma no recebimento dessa lei diante de graves fatos jurídicos e políticos que o Brasil estava e ainda está enfrentando.
De qualquer maneira, deve-se compreender que a responsabilização de funcionários públicos é aspecto necessário ao Estado de Direito, conceito esse histórico e de grande valor humano. Não obstante, observa-se que a nova Lei de Abuso de Autoridade acabou por quebrar limites anteriormente definidos, especialmente diante dos crimes de prevaricação e de violência arbitrária que passavam impunes aos olhos da sociedade.
Os constantes abusos do Estado culminaram na necessidade de criminalizar aquele que é detentor do poder de julgar e condenar a todos. Antes inatingível no topo da hierarquia, agora o Estado vê-se como réu, lutando contra si mesmo para que se puna em razão do desenfreado uso de seu poderio. Mas por óbvio, como observado, se quem é o réu também é quem aplica a reprimenda, não será esta a mais severa ou a mais odiosa que se buscará como resultado.
O anseio populacional pela responsabilização daqueles que abusam de seu papel enquanto agentes do Estado fizeram com que os próprios representantes do povo formulassem e aprovassem normas, leis ou outros meios de controle de tais atos, demonstrando com isso uma função social e aplicação igualitária do poder punitivo.
A figuração do Estado ou de seus agentes no polo passivo da demanda, modestamente apareceu aos poucos, evoluindo do cível, até o criminal. De fato, a fantasiosa “punição” penal que o Estado recebe não se equivale ao dano sofrido pela vítima, dadas as proporções comparativas entre o singular indivíduo e a intangível presença do Estado.
Portanto, o Legislador da Lei 13.869/2019 teve o cuidado em colocar, de maneira destacada, que todos os tipos penais, configuradores de crime de abuso de autoridade, exigem além do dolo, a especial finalidade de “prejudicar outrem”, bem como ainda beneficiar a si mesmo ou a terceiro, como sistematicamente vivenciamos por atos irresponsáveis e covardes, exclusivamente por mero capricho e/ou prazer, unicamente para satisfação pessoal, ao qual a legislação agora prevê sanções rígidas para estes nefastos casos.
Sem dúvida, o crime de abuso de autoridade consiste na violação aos direitos e garantias fundamentais de natureza individual, ou seja, classificado pela doutrina como direitos fundamentais.
Importante esclarecer que, para se configurar abuso de autoridade, o dolo deve ter a motivação certa, intencional e pré-definida, inexistindo, no Direito brasileiro, abuso de poder por mera negligência. Dessa forma, para que haja crime, o agente deve ter a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro.
De mais a mais, o medo da “população carente” e submetida, a imposição pelo silêncio que é feita, a promessa de reiteração das truculências, sem se falar do temor generalizado que a população sente notadamente pelo aparato policial, reflete bem o sentimento das pessoas quando das abordagens e das intervenções policiais. Após a desmoralização, o sofrimento físico, a cruel manifestação do preconceito, o constrangimento sofrido e a ferida aberta na dignidade e integridade, um exame de corpo delito quase nenhuma consequência reparadora trará.
Dessa forma, a violência é conceito por demais conhecido, vivenciado pelas pessoas ora como agentes ora como vítimas. De um modo geral, consiste basicamente em uma ação direta ou indireta, destinada a limitar, ferir ou destruir as pessoas.
Ademais, a limitação da ação dos agentes estatais, logicamente estendido ao trabalho policial, possui fronteiras constitucionalmente delimitadas, onde o respeito à integridade física e à dignidade humana não pode ser afrontado sob pena de colocar em desvalia a prevalência universal do princípio dos direitos humanos, em sua plenitude. Assim, quando a norma constitucional diz que o Estado brasileiro tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (Art.1º, III) ou que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (Art.5º, III), não está cuidando de algo teoricamente inaplicável, mas sim de uma efetiva exigência da preservação dos direitos do homem, sem a qual a arbitrariedade, a insegurança e o medo se generalizariam e a vida em sociedade voltaria a um estágio de barbárie, o que sem dúvida não se pode admitir nos dias atuais.
Em assim sendo, a responsabilização do Estado e de seus agentes diante do próprio Direito estatal é uma das marcas indeléveis do Estado de Direito, como limitação do poder por essência, o Estado de Direito é construção histórica.
* José Ricardo Marques Corbelino é advogado em Cuiabá e membro da ABRACRIM