Recentemente tivemos a notícia sobre o aumento de 30 para 39 no número da composição de desembargadores no Tribunal de Justiça de Mato grosso, em decorrência da aprovação da lei complementar nº 661/2020, na Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso, que alterou o caput do art. 19 da Lei nº 4.964/1985. Neste sentido, tal notícia, provocou-me reflexões sobre uma possível oportunidade de se constituir algumas medidas concretas, para primeiramente reconhecer, e posteriormente, se enfrentar o racismo institucional, em alguma de suas dimensões.
O racismo institucional é um sistema discriminatório que reproduz as condições materiais de desigualdades raciais presentes na sociedade para os espaços institucionais de poder, bem como para o seu funcionamento normalizado (naturalização de subordinação, controle, padrões e etc.), assim, tem-se por uma de suas consequências, a hegemonia de pessoas brancas, sobretudo homens, ocupando os espaços de comandos institucionais, nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, no Ministério Público, nas reitorias de Universidades Públicas, assim como, nas diretorias das grandes instituições privadas.
Portanto, nesta linha de raciocínio, a título de exemplo, ao se constatar o último censo racial do Poder Judiciário feito em 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça, verificamos que apenas 15,6% da magistratura brasileira se autodeclarava negra, tal constatação, denuncia a ausência de pessoas negras na magistratura, uma vez que, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também em 2013, indicava que 50,70% da população brasileira se autodeclarava negra (Pretos ou Pardos).
Da mesma forma, esta invisibilidade da população negra, é constatada em Mato Grosso, segundo os dados oficiais do PNAD/IBGE de 2013, cerca de 60% por cento da população em nosso estado, se autodeclarava negra (pretos ou pardos). Neste sentido, através destes dados, e formulando um questionamento comparativo/provocativo: Em Mato Grosso, temos 60% dos espaços de comando e poder institucionais, nos Tribunais Regionais, no Poder Legislativo e no Poder Executivo ocupados por pessoas negras?
O jurista Silvio de Almeida em seu livro denominado Racismo Estrutural, leciona que “ O racismo institucional faz com que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo se torne o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade. Assim, o domínio de homens brancos em instituições públicas o legislativo, o judiciário, o ministério público, reitorias de universidades etc. - e instituições privadas – por exemplo, diretoria de empresas – depende, em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/mulheres, e em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado por homens brancos”.
Diante dessa nociva sub-representatividade institucional da negritude, conclui-se que as Instituições tem por compromisso democrático, reconhecer a existência de um sistema de discriminação racial vigente no país, e atuar pelo seu rompimento, com a finalidade de promover a equidade racial e a democratização nesses espaços institucionais.
No entanto, é importante salientar, que a representatividade, ainda que importante, por si só não basta. A mera presença de pessoas negras e de outras minorias políticas em espaços de poder e decisão da sociedade, ainda não traduz na mudança (anti)discriminatória em sua forma de atuação. Segundo o próprio Jurista Silvio de Almeida, “(...) uma instituição que realmente se preocupe com a questão racial deve investir na adoção de políticas internas que visem: (i) promover igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo – por exemplo na publicidade; (ii) remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de direção e de prestígio na instituição; (iii) manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais; (iv) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero”.
Portanto, após 132 anos da falsa abolição da escravidão no Brasil, período que foi fundado no elemento estruturante do racismo, ainda percebe-se em nossa realidade social, a existência de discriminações, violações, violências, entre estas as institucionais, que no contexto político e econômico, causa um impacto devastador no campo dos direitos da população negra e indígena.
Desta forma, reconhecendo este problema em sua dimensão social, a Constituição Federal de 1988 garantiu, em diversos momentos a promoção da igualdade racial, ao proclamar como fundamentos da República Federativa do Brasil a cidadania e a dignidade humana (atr. 1º, II e III, da CF), constituindo-se como seus objetivos a promoção do bem de todos sem preconceito de origem, raça, cor e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, da CF), repudiando o racismo como um de seus princípios (art. 4º, VIII, da CF), assegurando a igualdade perante a lei em direitos e obrigações (art. 5º, “caput”, I, da CF), criminalizando a prática de racismo como crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII, da CF), estabelecendo, ainda, a proibição de diferenças salariais, de exercício de funções e critérios de admissão em função da cor (art. 7º, XXX e 39, §3º, da CF).
Considerando também que o art. 2°, II, da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 1968, dispõe que “Os Estados Partes tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico, cultural e outros, as medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.”
Considerando as decisões pela constitucionalidade das cotas raciais, nas universidades públicas, e também dos concursos públicos, em âmbito federal, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 186 e na ADC 41.
Conclui-se a notória proteção constitucional acerca da vedação à desigualdade racial, de modo a reconhecer a igualdade material, nas oportunidades sociais e distribuição de riquezas e poder a todos. Bem como nas legislações infraconstitucionais vigentes no país, vide o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei nº 12.990/2014 (Lei das cotas raciais nos concursos públicos), a Lei 7.716/1989 (Lei do Racismo/Lei Caó), Lei nº 12.711/2012 (Cotas no Ensino Superior), entre outras diversas leis, da mesma importância.
Desta forma, tais direitos fundamentais e legislações em prol da equidade racial, colaboraram juridicamente, também para a implementação das cotas raciais no Poder Judiciário, por meio da Resolução do CNJ nº 203 de 23/06/2015 , que garante a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura, para as pessoas negras.
Portanto, diante destas constatações e fundamentos expostos acima, vislumbra-se uma oportunidade, a curto prazo, às nossas instituições em promoverem micro rupturas no racismo institucional, ao visibilizar e reconhecer as potências negras locais, sobretudo destas, as potências negras mulheres, que atuam em Mato Grosso, que em razão do trabalho são autoridades públicas em determinadas áreas jurídicas/sociais, que detenham reputação ilibada, prestígio e reconhecimento público pela competência profissional exercida durante décadas na sociedade mato-grossense e nacional, para por exemplo, compor a ocupação (i) do quinto constitucional e (ii) das promoções da magistratura para a composição do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, conforme o aumento no números de desembargadores de 30 para 39. Este seria uma importante medida e sinalização concreta do compromisso com a equidade racial e enfrentamento ao racismo, de nossas Instituições.
Neste sentido, se queremos fortalecer o processo de democratização do país, tem-se como uma das condições, a promoção das minorias políticas nos espaços de poder, associada às implementações de medidas antidiscriminatórias, que quando já existentes, devem ser reforçadas e/ou ampliadas, em nossas instituições.
Aurélio Augusto Júnior, é advogado, presidente da Comissão em Defesa da Igualdade Racial da OAB-MT, conselheiro-suplente da Juventude em Mato Grosso e conselheiro Municipal da Juventude.