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Aborto de anencéfalos, um ato temeroso

Data: 08/05/2012 16:00

Autor: Ézio Ojeda

imgNão é de hoje que o aborto confunde até as mais nobres mentes humanas. Aristóteles (384 a.C.), filósofo grego, mestre de Alexandre o Grande, já se posicionava como defensor desta prática. Propunha uma espécie de eugenia, selecionando casos com possibilidade de extermínio do feto antes da formação de sua alma, o que se acreditava surgir por volta do 40º ou 80º dias de concepção, dependendo se feminino ou masculino, respectivamente. Talvez tivesse herdado este raciocínio de seu professor, Platão (348 a.C.), que, compreensivelmente enxergava o ser humano com o prisma intelectual de sua época, elucubrando sobre limites temporais relativos a formação in personae da alma, como se isso fosse possível estabelecer cientificamente. 
 
Não só os seculares admitiam o aborto. Sabemos que uma das mais brilhantes personalidades da Igreja, Santo Agostinho (354 a.C.), também considerava aceitável o aborto nos casos de fetos antes da constituição de sua alma. O Direito Canônico, porém, logo corrigiu este desvio teológico e passou a condenar o ato incondicionalmente.
 
Nos dois primeiros meses de gestação, o aborto é chamado de ovular, no terceiro e quarto meses, embrionário e daí em diante denomina-se fetal.
No mundo jurídico, não há consenso mundial quanto ao tema. Os E.U.A, a França, a Holanda, a Índia, a Itália, o Japão, e a Rússia são exemplos de países que permitem o aborto. Já o Afeganistão, o Brasil, o Irã, a Irlanda, o Líbano, a Líbia e outros tipificam-no como criminoso. 
 
Excetuando os casos de Aborto Necessário ou Terapêutico (art 128, I CP) e Humanitário ou Sentimental (art 128, II CP), o Brasil, agora, com o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal, passa a descriminalizar um outro tipo de interrupção da gestação, a eugênica. Sim, eugênica, pois, com o mesmo critério dos espartanos, decreta-se a morte dos fetos com anomalias, alegando impossibilidade de sobrevida dos anencéfalos.
 
A palavra anencefalia significa “sem encéfalo”, sendo encéfalo o conjunto de órgãos do sistema nervoso central contido na caixa craniana. Ocorre em 0,1% na população mundial, mais comum no sexo feminino. Estudos mostram que 25% das crianças anencéfalas que vivem até o fim da gravidez morrem durante o parto; 50% têm uma expectativa de vida de poucos minutos a 1 dia; 25% vivem além de 10 dias. 
 
Pois bem, há algumas questões relevantes a serem consideradas sobre o assunto. Abordarei os detalhes médicos, primordialmente. Hoje, em nossa sociedade, vivemos uma onda de denuncismo que alguns denominam mesmo como "Indústria da Indenização", onde, pelo espectro de manto da Justiça Social consagrada pela Constituição Cidadã de 1988, em seu art 5º, XXXV, temos que a ninguém é negado o acesso à Justiça (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito). Essa liberdade pode gerar consequências gravíssimas se mal utilizada. Na verdade, o exercício maléfico de um direito pode ser pior que uma ditadura. Pode insurgir um excesso de procedimentos como este, sem a devida indicação clínica.
 
Sabemos que não existe nenhum aparelho de exame médico perfeito. Mesmo as mais sofisticadas e modernas máquinas são passíveis de falhas. Isso é peculiar do ser humano. Claro que, com o desenvolvimento da tecnologia, percebemos um grande avanço na acurácia dos resultados. Hoje, podemos vislumbrar cirurgias delicadas realizadas em tempo real através de robôs. Não, não é mais ficção científica! Mas não devemos cair na mesma tentação de Ícaro, sob o risco de assassinarmos milhões de inocentes. Esta aventura jurídica pode nos levar a um catastrófico fenômeno de seleção artificial de seres humanos. E, com certeza, a natureza e Deus saberão retribuir.
 
Apesar de muito aprimorado atualmente, o diagnóstico das malformações fetais, tanto genético, dosagem de alfafetoproteína (exame realizado na mãe e analisa a quantidade excretada desta substância pelo feto no líquido amniótico), tanto como por imagem, podem errar. Estatisticamente, são pequenas as ocorrências, contudo, quando incidem, pelo menos para a família, números não interessam. O risco se materializa e deixa de ser uma possibilidade. 
 
Logo, imaginem um caso fatídico onde o Ultrassom realizado por um médico experiente (que nem sempre o é), com um aparelho de última geração, que identifique e confirme um caso de anencefalia. Então, através deste laudo, repetido por mais dois profissionais competentes, formados pelas melhores escolas de Radiologia do Brasil, com mestrado e doutorado na área, realize-se o aborto, agora respaldada pelo STF.
 
Ocorre que, ao induzir a expulsão fetal por medicamentos, deparemo-nos com um feto perfeito!!!!! Algo QUASE impossível de acontecer ACONTECE! 
E agora, José? Nem Carlos Drumond poderia prever um dilema deste em seus contos. 
 
Mas, perfeitamente factível, inevitavelmente um dia surgirá nas manchetes dos jornais. Um desastre referendado pela Corte maior do nosso Judiciário que, embora conhecendo a real limitação de nossa medicina, ainda mais a ofertada na Saúde Pública, pelo falido SUS (Sistema Único de Saúde), passa a condenar previamente, tanto os fetos e famílias vítimas destas lacunas da natureza, como os coitados dos médicos que tiverem a infelicidade de fazerem um diagnóstico falso de anencefalia, claro, orientados pelos instrumentos que dispuserem no momento do exame. 
 
Ora, caro leitor, vejamos a situação dos nossos hospitais públicos! A maioria trabalha em calamidade. Os aparelhos de ultrassom, se existirem, são de 3 (três) décadas de fabricação! Sucateados! Como exigir um diagnóstico confiável do operador? 
 
Diante dessa cena trágica, só tenho certeza de uma coisa: o único a ser responsabilizado penal e civilmente será o infeliz do ultrassonografista. Nem o STF, nem o Procurador Geral da República, nem a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que entrou com a ADPC 54(Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54), nem mesmo o Conselho Federal de Medicina, ninguém participará da defesa deste mártir. Este homem será execrado e terá que abandonar a cidade onde trabalha ou mesmo a própria carreira de Hipocrates (Pai da Medicina, 377 a.C.), se não pagar com a própria vida pelo desastre!
 
É, a realidade é terrível. Além do problema filosófico e teológico que abarcam o tema, o aspecto jurídico da questão é profunda. Não apenas em relação ao questionamento da certeza do laudo médico da anomalia, mas em relação ao Direito à Vida, direito este personalíssimo do nascituro, que ninguém pode dispor em seu lugar. 
 
Algo mais emblemático, então, surge na discussão: a partir de quando, conquistamos a personalidade civil e tudo o que dela se depreende? Daí, temos basicamente três teorias que tratam do assunto no Brasil: a Natalista (que prevê a personalidade civil estritamente mediante o nascimento com vida), a Concepcionista (assume uma visão mais alinhada com a religiosa, onde entende que o ser humano existe a partir da concepção) e a Teoria da Personalidade Condicionada, onde só admite tal peculiaridade ao feto que nascer com vida. 
 
Humanisticamente, com o aval de um dos mais respeitados juristas do Brasil e do mundo, Ives Gandra da Silva Martins, penso que a Teoria Concepcionista é a mais correta, senão vejamos. Como identificar um ponto dentro da evolução do produto uterino como sendo o início de sua vida, a não ser desde o momento da fecundação seguida de implantação no útero? Alguém poderia afirmar com certeza este momento? Assim como não podemos afirmar que uma criança não é gente e, assim, digna de direitos, também não podemos dizer que o embrião de 10 semanas ainda não tem personalidade civil ou não tem alma como o queria Aristóteles! 
 
Se o feto nascer com a anencefalia, o evento já será de per si horrível. Mas se, ao invés de doente, for abortado um feto sadio, baseado na confiança de um laudo de imagem, as consequências desse fato serão inimagináveis... Por menores que sejam os riscos, depois de ocorrido, o erro é irreversível! Não seria mais prudente e humano deixar a natureza andar com suas próprias pernas e levar a termo esta gravidez? 
 
Se ponderarmos que a falha diagnóstica é irrisória e, por isso, poderíamos assumir o aborto, mais rara ainda é a incidência desta anomalia genética em escala mundial! Como supracitado, uma em cada mil gestações. Outra consequência desastrosa poderia ser também a banalização do aborto e a sua liberação para todos os casos de malformações. 
 
Com que autoridade condenaríamos as atitudes antissemitas de Hitler? Estamos caminhando certamente para a Democracia. Teremos, porém, que reconhecer os limites que esta situação nos impõe, sob pena de chegar muito perto do sol, como o fez o herdeiro desobediente de Dédalo e derretermos a cera das asas de nossa imaginação, sucumbindo os nossos próprios filhos! 
 
Dr Ézio Ojeda
Advogado e médico
 
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